domingo, 15 de dezembro de 2013

Memórias referentes ao tempo, ao espaço e a eventos compartilham rede de neurônios


Recordações conectadas Estudo publicado na Science mostra que as memórias referentes ao espaço e a eventos compartilham a mesma rede de neurônios

Paloma Oliveto
Estado de Minas: 15/12/2013



Quando se recordava das visitas do Sr. Charles Swann à fictícia cidadezinha francesa de Combray, o narrador da saga Em busca do tempo perdido evocava, ao lado da figura do vizinho, o grande castanheiro, a mesa de ferro do jardim, a “chama da lâmpada de cristal da Boêmia, em forma de urna, suspensa do teto por pequenas correntes”, a lareira de mármore de Siena, uma “salinha que cheirava a íris” ou a “saleta onde todos se abrigavam se chovia”. Na obra-prima de Marcel Proust, uma ode à memória, a lembrança de episódios está profundamente ligada à visualização dos lugares onde eles ocorreram. Na vida real, também é assim: quando se fala no trágico 11 de setembro, todo mundo se lembra de onde e com quem estava ao ouvir a notícia; quando se encontra um velho amigo na rua, a tendência é formar, na mente, a imagem contextualizada do último encontro.

Essas são as caracerísticas do que os cientistas chamam de memória episódica: a capacidade de armazenar e, depois, recuperar recordações que estão associadas a um determinado lugar no tempo e no espaço. Isso levanta a desconfiança de que tanto a memória episódica quanto a espacial — aquela que permite dirigir de casa para o trabalho quase sem pensar no trajeto — envolvam as mesmas redes de neurônios. De acordo com especialistas, a melhor compreensão  sobre esses circuitos é fundamental para o estudo de problemas como as demências, que apagam do cérebro não apenas os fatos, mas, muitas vezes, a orientação espacial dos pacientes.

Com um jogo de computador que simula entregas de mercadorias e objetos em uma cidade virtual, pesquisadores alemães e americanos conseguiram mostrar que as células cerebrais ativadas na memória episódica são as mesmas que entram em atividade na recordação de informações espaciais. De acordo com eles, como em um mapa cheio de alfinetes coloridos, esses neurônios fazem “marcações geográficas” (geotags) para memórias específicas e são ativados imediateamente antes de essas recordações serem puxadas pela mente. Assim, o encontro com o velho amigo na rua “acende” a rede de neurônios, trazendo não só a imagem dessa pessoa, mas também, por exemplo, da praça onde ela foi vista na última vez.

 “Acreditamos que nosso trabalho possa mostrar como a informação espacial se incorpora às memórias e por que lembrar de um episódio pode rapidamente trazer à mente outros eventos que aconteceram no mesmo lugar”, destaca Andreas Schulze-Bonhage, neurocientista do Centro de Estudos do Cérebro da Universidade de Freiburg, na Alemanha, e principal autor do estudo, publicado hoje na revista Science. Ele se refere ao fato de que, aparentemente sem motivo, alguns episódios vêm à cabeça, mesmo que não estejam diretamente relacionados com a memória evocada. Mais uma vez, pensando no velho amigo, é possível que, logo depois de vê-lo, a pessoa se recorde de um assalto e não saiba o motivo da lembrança. A explicação pode ser que o crime tenha ocorrido na mesma praça onde ela encontrou aquela pessoa.

Cidade virtual
No estudo, os cientistas monitoraram a atividade cerebral de sete voluntários que sofrem de epilepsia enquanto eles jogavam um game desenvolvido apenas para a pesquisa. A escolha dos participantes se deu pelo fato de essas pessoas fazerem parte de um tratamento experimental para o distúrbio neurológico, que consiste no implante intracraniano de microeletrodos. Dessa forma, é mais fácil visualizar a atividade elétrica dos neurônios em tempo real.

O simulador era bastante simples: os voluntários navegavam por uma cidade virtual composta por 16 lojas e 42 prédios, além de árvores, bancos, caixas de correio, postes de luz e gramados. Cada estabelecimento comercial tinha um visual próprio, para que os participantes pudessem diferenciá-lo dos demais. Enquanto eles se deslocavam pelo ambiente com a ajuda de um controle remoto, os cientistas faziam a observação das redes de neurônios, a partir de sinais mandados pelos eletrodos para um monitor.

No início do jogo, depois de se familiarizarem com a cidade, os voluntários eram instruídos a fazer entregas em determinadas lojas, mas eles só sabiam qual objeto carregavam quando chegavam ao local. Depois de deixar o item, os jogadores partiam para a próxima loja indicada pelos pesquisadores. Após 13 paradas, a tela do computador ficava em branco. Então, pedia-se aos voluntários para falarem quais itens eles haviam entregado ao longo do jogo, na ordem em que se lembravam.

Mapa mental
De acordo com o neuropsicólogo Michael J. Kahana, pesquisador da Universidade da Pensilvânia e coautor do estudo, ao pedir que os jogadores se recordassem dos itens entregues em vez das lojas visitadas, a ideia era testar se o sistema de memória espacial seria ativado quando os participantes tentassem acessar, na mente, a memória episódica.

“Como os eletrodos monitoravam a atividade elétrica das redes neurais, conseguimos ver que foi exatamente isso que aconteceu. Enquanto os voluntários navegavam pela cidade, os neurônios do hipocampo (uma região crucial para a memória) e das áreas próximas iam se acendendo, como num GPS. Isso foi muito interessante, pois praticamente se montou um mapa mental do deslocamento”, comenta Kahana. “Essas mesmas luzinhas se acenderam quando eles tentavam lembrar dos objetos entregues”, diz.

Segundo o neuropsicólogo, agora, há uma prova direta — a primeira — de que o sistema de formação de memória espacial e episódica compartilham uma mesma arquitetura. “Para o estudo dos distúrbios de memória, esse pode ser um grande achado”, acredita. “O sistema que envolve a memória episódica é o último a se desenvolver na criança e o primeiro a declinar na idade adulta. Por isso, recentemente, a comunidade científica tem devotado uma intensa atenção a essa questão. Entender seus mecanismos é uma ferramenta essencial se quisermos lutar contra a demência”, opina Jonathon Crystal, professor do Departamento de Neurociência Psicológica da Universidade da Geórgia e estudioso do tema.



"O sistema que envolve a memória episódica é o último a se desenvolver na criança e o primeiro a declinar na idade adulta. Entender seus mecanismos é essencial se quisermos lutar contra a demência”
Jonathon Crystal, professor da Universidade da Geórgia

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