Estado de Minas: 22/12/2013
Desculpem-me por voltar a esse assunto, sobre o qual, na verdade, não escrevi, mas sobre o qual todos já discorreram. É que me saltou à cabeça que toda a façanha de Mandela é ilustrativa de duas constantes presentes na trajetória de grandes figuras míticas: a descida aos infernos e a subida à glória celestial. Dizendo isso, estou aperfeiçoando algo que mencionei quando me pediram a opinião sobre o que representava a figura daquele líder africano.
Na ocasião, disse algo que me pareceu interessante. Mas era imperfeito: a vida de Mandela parecia um script, um script que deu certo. Fazia eu aproximação com os scripts de cinema, em que tudo é amarrado, tudo é tão bem encadeado que o desfecho nos parece uma máquina onde todos os mecanismos se articulam.
Mas estava dizendo algo pela metade. Meu inconsciente seguiu trabalhando e, de repente, sobreveio-me essa ideia, quae sera tamem. Não sei por que os analistas do fenômeno Mandela não a utilizaram.
O que ocorreu com a vida de Mandela foi aquele duplo fenômeno: primeiro, a mítica da descida do herói aos infernos e posteriormente sua ascensão aos céus.
Os grandes heróis míticos descem aos infernos. Descer aos infernos (o que se chama tecnicamente catábase) é um dever, imposição dos deuses. Faz parte do aprendizado. É uma provação. Só os seres superiores conseguem se sair bem nisso.
É fácil encontrar exemplos em todas as mitologias. Na Odisseia, por exemplo, no canto XI, Ulisses vai ao Hades (inferno) conversar com Tirésias. Também Orfeu vai ao mundo das sombras. Virgílio, na Eneida (canto VI), faz Eneias descer aos infernos. Isso existe nas mitologias do Leste e do Oeste. Se tomarmos a Bíblia, temos dois exemplos notáveis: o inferno que foi a travessia (durante 40 anos) do deserto pelos judeus antes de chegarem à Terra Prometida. E o próprio Cristo passou pelas provações infernais.
Esse mergulho no submundo, no inframundo que a gente pensa ser coisa dos deuses, no entanto, está até nas novelas televisão. O herói (ou heroína) sempre acaba preso, perde sua fortuna e amigos, ou seja, repete aquela tragédia de Jó, que perdeu tudo. Perdeu e recuperou em dobro. Provocando algum amigo comunista, eu diria que o marxismo é uma versão judaica e ocidental do mito de redenção dos pobres. Lembram-se daquele filme italiano A classe operária vai ao paraíso?
É aí que a estória de Mandela se torna mais ilustrativa e pega todo mundo pelo pé. Ele reúne dois tópicos míticos: passou pela catábase (sua luta, sua prisão), mas depois teve a sua anábase, ou seja, subiu aos céus do noticiário com todas as honras, hinos e coros. O mundo inteiro foi participar desse ritual mítico.
Muitos heróis realizam só a parte infernal. São abatidos pelos inimigos, como Luther King. Outros só depois de mortos ascendem à glória. A vida de muitos artistas narra o inferno em que viviam, a ascensão e a glória só ocorrem depois que morrem.
Mandela conseguiu algo raríssimo: reuniu, em vida, tanto a desgraça quanto o sublime. Juntou as duas pontas. De mártir virou santo. Chegou à presidência de seu país depois de ter passado a vida inteira no inferno da prisão, foi reverenciado por todos, até pelos inimigos. Depois de morto, tornou-se imbatível, inalcançável, celeste.
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