domingo, 22 de dezembro de 2013

Tradutor ou traidor? Regina Teixeira da Costa


Estado de Minas: 22/12/2013 


 Toda esta espantosa notícia do impostor Thamsanqa Jantjie, contratado na África para traduzir aos surdos os discursos das autoridades internacionais mais importantes do mundo na homenagem para Nelson Mandela, me levou a algumas recordações.

De um dos primeiros seminários de psicanálise do qual participei, quando iniciei minha carreira, ministrado pelo psicanalista Fábio Borges. Trabalharíamos o texto freudiano e pela questão da tradução. Discutimos a importância do rigor nas traduções. A única tradução de Freud para o português foi feita a partir da Edição Standard Inglesa organizada por James Strachey, já bastante criticada no meio psicanalítico. A Standard Brasileira foi traduzida não do alemão, que era a língua de Freud, mas da tradução inglesa!

Sem sombra de dúvidas isso nos afastou do texto original e produziu inumeráveis desvios com os quais tínhamos de lidar para aprender a psicanálise na sua originalidade. Era uma disciplina nova, conceitos específicos e os erros e equívocos na tradução faziam perder o fio no sentido original proposto pelo criador.

Ler Freud era uma aventura que carecia de todo um trabalho junto a textos originais em alemão, trabalho feito por Fábio Borges, que precisava ser artista para acompanhar o trajeto, a escrita de Freud. Trabalho tanto árduo quanto precioso.

Ele nos dizia ser esse labor um textecer do texto, que se constituía à semelhança de um tecido, no qual os fios são juntados, misturados e entrelaçados, até formar um sentido. Um movimento delimitado pelo próprio produto do tecer, ou seja, o texto. Nele, letras, palavras, frases substituem os fios e elas são juntadas, entrelaçadas até constituírem um texto. Seu modo poético de ensinar encantava.
Apesar de buscar as melhores palavras para expressar o sentido mais fiel, sabia ser o tradutor um traidor pela impossibilidade de traduzir sem deixar rastros e marcas pessoais sobre a escrita do autor.

Um paralelo nos ensinou ainda mais: o trabalho do analista é semelhante ao do tradutor. Seu espaço de labor é o de tornar dizível o indizível que é o desejo inconsciente trazido pelo paciente. E também essa tradução, como todas, nunca poderá ser absolutamente precisa, pois o inconsciente é não todo decifrável. É preciso muito rigor nesse trabalho.

Então, voltando ao falso tradutor africano. Vendo aquele homem gesticulando e sabendo não ter nenhum sentido naquilo que transmitia, lembrei-me da importância e nobreza daquela função, de que além de o tradutor ser, querendo ou não, traidor e por associação livre voltei àquele tempo. Nesse caso, porém, houve negligência total na seleção e do tradutor incapacidade mental para assumir tal função. Pelo menos é o que afirmou Jantjie depois de acusado.

A pergunta que não se cala é como uma pessoa é contratada para um trabalho tão importante, sem nenhuma seleção ou critério minimamente sérios? Ele estava a dois passos dos mais importantes líderes mundiais, num momento histórico da humanidade.
Ele se declarou esquizofrênico em surto: "Não havia nada que eu pudesse fazer. Eu estava sozinho em uma situação muito perigosa", contou. Tentei me controlar e não mostrar ao mundo o que estava ocorrendo. Peço desculpas”.

Trata-se de falta de responsabilidade e incompetência inaceitáveis. Mostra do inacabamento e da errância humanas, e também demonstração clara e precisa da importância e da necessidade de um psicanalista para, antes de colocar alguém em posição de tamanha exposição, que se soubesse pelo menos o básico sobre a capacidade em sua estrutura psíquica. 

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