quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

E a Primavera Árabe? - Vitor Gomes Pinto

E a Primavera Árabe?
 
No Egito, o afastamento de Osni Mubarak não significou mudança. O regime ficou intacto e derrubou o governo eleito de Mohamed Mursi


Vitor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional


Estado de Minas: 26/12/2013 

Por não querer pagar propina para não ter sua banca de frutas confiscada, em 18 de dezembro de 2010, o jovem Mohamed Bouazizi acendeu o fósforo imolando-se na praça central da pequena localidade de Ben Arous, vizinha a Tunis, em protesto contra as injustiças do mundo e contra a corrupção. Foi a fagulha que incendiou a população que já estava nas ruas, levando-a a derrubar em apenas 28 dias a ditadura do presidente Zine Abidine Ben Ali. A Revolução do Jasmin foi a precursora de movimentos populares que se espraiaram em distintos graus de intensidade, na chamada Primavera Árabe, da Tunísia para a Líbia, Egito, Marrocos, Síria, Iêmen, Bahrein, Omã, Argélia, Mauritânia, Iraque, Líbano e Kuwait.

O terceiro aniversário não poderia passar em branco. Na verdade, exigia uma comemoração à altura, bombástica, e as forças norte-americanas que estão no Iêmen combatendo o terrorismo internacional não deixaram por menos. No árido altiplano da província de Baída, ao sul do país, uma festiva caravana se deslocava, vencendo vagarosamente o chão pedregoso de estradas por vezes inexistentes rumo à cidade de Rahda, onde celebrariam um casamento sunita, numa típica cerimônia iemenita. Para o Comando Conjunto de Operações Especiais (JSOC, na sigla em inglês) que opera na região com o apoio da CIA, contudo, a inocente caravana, que supostamente carregava os noivos e suas famílias, era apenas um disfarce que permitia a locomoção de perigosos elementos da Al-Qaeda, de forte presença em Baída. Sem condições de comprovar suas suspeitas, por via das dúvidas o JSOC decidiu atacar e o fez por meio de um drone (veículo aéreo não tripulado), que bombardeou com precisão cirúrgica o cortejo, matando pelo menos 17 civis e deixando mais de 30 feridos. Alguns poucos veículos de comunicação dos Estados Unidos perguntaram o que ocorreria se o ataque tivesse ocorrido no território nacional. Como foi no Iêmen, o assunto em seguida “morreu” sem qualquer explicação, pois quem se interessa por algumas vítimas a mais, além disso não norte-americanas, naquele quase fim de mundo?

A revolução pacífica e idealista inicialmente resultou numa extraordinária euforia para povos árabes que pela primeira vez conquistavam o direito de externar suas queixas e opiniões em praça pública. Os 19 países árabes mesclam regimes civis autoritários em geral com firme base militar a um conjunto de oito reinos e emirados sustentados pelas reservas minerais que representam metade do petróleo e um quarto do gás do planeta. Já no segundo ano veio a contrarrevolução, inspirada pelos temores das monarquias do Golfo Pérsico e dos comandos militares. O resultado foi a guerra. A intervenção externa na Líbia promoveu a execução de Muamar Kadhafi, substituindo-o por um governo débil que não consegue controlar as centenas de milícias que espalham o terror pelo país.

No Egito, o afastamento de Osni Mubarak não significou mudança, pois o regime ficou intacto e ainda reuniu forças para derrubar o governo eleito de Mohamed Mursi, em julho, e para reprimir com renovada violência a oposição muçulmana. No Bahrein, a tentativa de derrubar o rei Isa al-Khalifa fracassou graças à intervenção armada dos sauditas. O ditador Bashar al-Assad continua no posto sustentado pelo apoio russo, mas a guerra civil síria já ocasionou mais de 126 mil mortes e milhões de refugiados nos países vizinhos. Os enfrentamentos prosseguem na Argélia, apesar de Abdelaziz Bouteflika ter sido reeleito para a Presidência, em pleito com nível recorde de abstenção.

No Marrocos, no Sultanato de Omã e na Jordânia, até agora as expectativas por reformas e democratização não se concretizaram. A queda de Ali Abdullah Saleh após 33 anos como ditador e a posse de seu vice não trouxeram a paz ao Iêmen, onde o grupo da Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA) domina boa parte do país apesar da presença norte-americana. Militares de um lado e muçulmanos de outro continuam predominantes no cenário árabe. Eleições (livres dentro do possível) têm sido ganhas pelos mais bem-estruturados partidos islâmicos, como nos casos do Egito e da Tunísia. A Irmandade Muçulmana é um movimento com 82 anos de vida e vem sobrevivendo mesmo quando o colocam na clandestinidade.

A Primavera Árabe permitiu o crescimento do islamismo como força política, mas quando os grupos religiosos chegam ao poder não resistem à tentação de implantar a Sharia, a lei de Alá, gerando a rejeição de grande parte da sociedade. No entanto, a situação parece estar mudando. De um lado, o clima de guerra permanente é insustentável porque conduz à formação de Estados falidos, como já se desenha nos casos do Egito, Líbia, Síria e Iêmen. De outro lado, as velhas desculpas que têm justificado os regimes de exceção nos últimos 60 anos cada vez mais perdem sustentação, ou seja, não adianta mais pôr a culpa no colonialismo e imperialismo ocidental e na presença do Estado de Israel. Além disso, é indiscutível que os palestinos precisam de uma solução territorial, mas a sua causa já não é o fator principal que move os líderes árabes. Se a Primavera Árabe, com todo o seu imenso potencial de canalização de energias positivas inovadoras, pretende chegar a algum lugar terá de resolver pelo menos seus muitos conflitos armados internos e atingir um estágio de militância política islâmica que permita uma convivência razoavelmente harmônica com as demais crenças e correntes de opinião. 

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