quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

MARINA COLASANTI » O lado de cá da cerca


Estado de Minas: 26/12/2013 


É um senhor de idade e está de pé, encostado na cerca do Jardim Botânico, lado de fora. Reparo nele ao passar. Por que me chama a atenção em meio a tanta gente parada e em movimento, tantas personagens na rua, cada uma merecedora de atenção? Porque há nele uma atitude outra, quase desafiadora, incomum na sua idade.

Nada combina com nada na sua roupa e tudo acaba combinando. O descasamento das peças resulta estranhamente elegante, talvez pela nota clara das calças largas e brancas de corte antigo, retomada no chapéu panamá de abas generosas. Usa suspensórios por cima da camisa social azul-celeste, mas não dispensa o cinto. A gravata gasta irmana cores escuras em estampa quase art déco e o paletó cinza é visível sobrevivente de algum terno. Nos pés, tênis, talvez o calçado mais cômodo para um andar não mais seguro.

Ninguém naquele bairro usa paletó e gravata. Ninguém está parado que nem ele, encostado e confortável, mãos metidas nos bolsos como se não existissem relógios. Ninguém, como ele, se distingue.

Penso que aquele homem está cumprindo uma rotina. Que todos os dias, em sua casa, se prepara como se prepara o toureiro, com esmero ritual, para enfrentar o cotidiano que tenta arrastá-lo para a decrepitude e dali para a morte.

Todos os dias, gravata e paletó, como usou em tempos de ir ao Centro trabalhar, de ter um escritório, uma mesa e tarefas. Todos os dias, chapéu. Pouco importa se diferentes dos ternos escuros e bem-escovados de então, do Borsalino. Os de hoje são simbólicos, uma espécie de recado para o inelutável que espera no escuro: ele ainda é um homem válido, tem seu lugar no mundo e o ocupa.

Todos os dias sai, embora agora volte para o almoço. Alguém na família talvez se preocupe, “há tanta violência nas ruas”, e ele finja incomodar-se com a preocupação que o fragiliza.

Reparo que murmura, não constantemente. De tempo em tempo, como que num tique, diz coisas para si mesmo ou para o nada, move os lábios em frases breves e torna a imobilizá-los. Olha à frente, sem distrair-se com os ciclistas que cruzam a calçada diante dele, sem mesmo desviar o olhar seguindo a moça que passa. Não creio que olhe diretamente os carros, tão monótonos e iguais no trânsito congestionado. Vê alguma coisa ou alguém que talvez nem esteja ali agora, o interlocutor a quem dirige as palavras murmuradas, ou a situação em que aquelas palavras adquirem sentido. Está bem, e parece lúcido. Não sabe que está sendo observado.

Ele poderia estar do outro lado da cerca, passeando nas amplas aleias do Jardim Botânico, envolvo em ar puro, farfalhar de árvores, e cantos de pássaros. Faria bem à sua saúde e é certo que foi o que o médico lhe recomendou. É o que a família pensa que ele faz quando sai dizendo que vai ao Jardim Botânico. Mas ele não está interessado no verde nem no cantar dos pássaros. O que ele quer, o que a sua postura e as mãos metidas fundas nos bolsos me dizem que ele quer, é respirar monóxido de carbono, ouvir buzinas e ronco de motores, ver aquele fluir constante de metal e gente sem ter que fixar-se nem nas máquinas nem nas pessoas. O que ele quer é continuar fazendo parte da muvuca da vida. E o lado de cá da cerca é sua maneira de evitar a passagem para o lado de lá, que, inevitável, o aguarda.

>>  marinacolasanti.s@gmail.com

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