domingo, 12 de janeiro de 2014

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Uma guerra há 100 anos‏

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Uma guerra há 100 anos 
 
Estado de Minas: 12/01/2014




Não tenho memórias da Primeira Guerra Mundial, embora mentisse para minhas filhas dizendo que uma cicatriz que possuo na perna direita surgiu numa daquelas trincheiras. Elas acreditavam. Acreditavam tanto quanto a criançada de uma escola onde disse que tinha 110 anos.

Embora tenha sobrevivido a outros tipos de guerras, tenha visto coisas de que o diabo até duvida, aquela guerra de 1914-18, cujo centenário amargamente comemoramos, me traz algumas lembranças. É como se eu a tivesse vivido e ali tivesse também morrido.

Mr. Moore, na assembleia no Colégio Granbery, em Juiz de Fora, narrava para nós, adolescentes, que toda uma companhia de soldados formada por seus colegas da universidade foi dizimada num ataque alemão. Por ser pastor evangélico e não ter ido à guerra, escapou. Mas parte dele morreu lá. Ele falava disso emocionado. Olhava-o perplexo.

Tão perplexo quanto maravilhado, ouvindo o carismático professor Irineu Guimarães contar, noutra assembleia, algo inacreditável: naquela guerra (estúpida como qualquer outra), os soldados que até então se defrontavam suspenderam o combate para celebrar o Natal juntos. Saíram de suas trincheiras, comeram, cantaram, celebraram. E voltaram depois para seus abrigos, atirando naqueles que momentos antes abraçavam.

Com o tempo, pensei que isso fosse folclore urbano. Mais uma lenda da fraternidade humana.

Mas a realidade nos dá lições diárias de ficção. Leio agora o diário de guerra de Ernst Junger. E isto me faz lembrar que o vi. Nos anos 90, estava eu num seminário no Escorial (Espanha) e alguém disse: “Aquele ali é o Ernst Junger”. Mal sabia quem ele era. Estava ali num seminário com diretores nacionais de bibliotecas e olhava aquele alemão com distante curiosidade. Diziam que ele havia estado na Primeira Guerra Mundial. Estava eu, portanto, diante da história. Contavam que ele recusou muitos cargos durante o nazismo. Era escritor e pensador. Especializou-se em entomologia. Serviu ao Exército imperial alemão, foi ferido várias vezes. E viveu 113 anos, morreu em 1998.

Acho que ele tinha ido lá para dar um curso nos Seminários de Verão no Escodrial. Um herói da Primeira Guerra Mundial tomava vinho numa das mesas daquele imenso refeitório.

E agora lendo uma reportagem sobre a guerra de 1914-18 vejo uma foto dele no fundo de uma trincheira, em 1915. Falam do seu livro Sobre as falésias de mármore, recontam sua trajetória. Mais: transcrevem parte de seu célebre diário de guerra. E é aqui que a narrativa que ouvi no colégio, que achava puro romantismo do meu professor, transforma-se em realidade.

Era o dia 12 de dezembro de 1915 e ele escreve o seguinte: “Quando eu saí do abrigo esta manhã, um surpreendente espetáculo se ofereceu aos meus olhos. Nossos homens havia escalado os parapeitos e falavam com os ingleses por entre o arame farpado (...). Um jovem oficial mostrou sua face, reconhecível por seu elegante casquete. Discutíamos em inglês, depois em francês enquanto em torno os outros homens escutavam. Eu lhe gritei que um dos nossos tinha sido morto por eles. Ele respondeu que não havia sido alguém de sua companhia. Nos contamos uma porção de coisas de maneira amigável, era uma conversa estranha. Manifestamos o desejo de trocar lembranças, embora isso fosse um mau exemplo para nossos soldados. Nos despedimos prometendo ir, após a guerra, ele a Uner den Linde e eu, em troca, a Londres. Uma solene declaracão de guerra se seguiu. Ele ordenou a seus homens que entrassem no abrigo e o mesmo fiz eu.. Um ‘Guten aben’ de sua parte e um ‘au revoi” que lhe dei em resposta, e recomeçou a guerra, embora meus comandados preferissem o que ocorrera antes. Dois minutos mais tarde, e depois de avisos dirigidos aos ingleses, eu descarreguei meu fuzil na direção deles”.

“Assim caminha a humanidade”, já dizia James Dean. E eu nem falei dos presos decapitados no Maranhão.

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