domingo, 12 de janeiro de 2014

Cine resistência

Cine resistência
 
Mostra Aurora do Festival de Tiradentes destaca nova safra do cinema autoral feito em Minas. Produções selecionadas têm fronteiras com as artes visuais e mesclam influências estéticas


Carolina Braga
Estado de Minas: 12/01/2014



A mulher que amou o vento, de Ana Moravi, é filme experimental com trama baseada em um mito (Maria Caram/Divulgação)
A mulher que amou o vento, de Ana Moravi, é filme experimental com trama baseada em um mito


É notório o quanto a Mostra de Cinema de Tiradentes tem se empenhado nos últimos anos para revelar o que de mais novo e arriscado há na produção audiovisual contemporânea. E se há um segmento dentro dela que se dedica especialmente à tarefa de apostar é a Mostra Aurora. Sabe o que ela nos sinaliza este ano? Mesmo que ainda haja espaço para crescimento, o cinema produzido pela nova geração de diretores em Minas anda muito bem na fita.

Entre os sete filmes que concorrerão ao Troféu Barroco e ao Prêmio Itamaraty, no valor de R$ 50 mil, quatro são realizações do estado. O que têm em comum é a faixa etária dos realizadores, ao redor dos 30 anos. Fora isso, são longas experimentais, fantásticos, comédias e documentários sobre temas variados. Os modos de fazer também são muito distintos.

Se durante algum tempo o cinema feito em Minas tornou explícita a influência das artes plásticas – vide trabalhos de Éder Santos e Cao Guimarães –, a nova safra, sem perder essa característica, avança em busca de novos caminhos. “É uma tentativa de encontrar algo além da fisicalidade de imagens. O pessoal está em busca de novas narrativas, outras formas de contar história”, resume a diretora Ana Moravi. Ela faz parte do grupo.

Aos 33 anos, estreará nas telas de Tiradentes com o longa-metragem A mulher que amou o vento. Classificado como experimental, o filme nasce de um estudo a respeito da imagem. Ao narrar uma trama inspirada no mito de Flora e Zéfico, Moravi nos diz que toda imagem carrega em si algo de invisível. Em busca de outros sentidos para o que não é visto, conta a história de uma mulher que se apaixona pelo vento. “Ele tem uma composição bem pictórica e flerta muito com essa coisa das artes plásticas”, adianta.

Já os diretores do coletivo Filmes de Plástico, de Contagem, exibirão em Tiradentes algo totalmente distinto até mesmo do que já foi apresentado em outras edições da mostra. Aliança, dirigido por Gabriel Martins, João Toledo e Leonardo Amaral, é uma comédia. Os três também são os protagonistas do longa, Pilo, Panda e Isaac, amigos de infância. Quando um deles é promovido e resolve se casar, os outros dois descobrem que a namorada dele o trai com o instrutor de ginástica.

“O filme todo se passa durante um dia, quando eles rodam Belo Horizonte tentando comprar o par de alianças. Nesse percurso, encontramos situações cômicas. A gente reflete sobre tudo: por que casar, a questão da traição e como cada um encara isso”, conta Gabriel Martins. O restante do elenco também é formado por amigos da galera da Filmes de Plástico.

Como Gabriel comenta, neste caso, não há qualquer aproximação com as artes plásticas, mas sim um interesse em descobrir outros modos de narrar. “Tem uma história que está sendo contada, com influências do cinema americano, da sessão da tarde, no bom sentido”, frisa.

Os outros dois concorrentes na Aurora são documentários. O bagre africano da Ataleia é descrito pelos realizadores Aline X e Gustavo Jardim como um roteiro de um filme de caça. O elemento central da narrativa é a existência de um peixe invasor, que afeta o imaginário da cidade. Segundo eles, o resultado reflete a criação contemporânea.

“Vivemos tempos de hibridez de linguagens e dissolução de fronteiras. Na feitura de O bagre africano de Ataleia, articulamos recursos próprios da literatura fantástica, do cinema documental, do cinema de gênero (terror e faroeste), em uma montagem rigorosa das imagens e sons captados em três etapas de filmagem”, detalham. Ao articular vários elementos, o objetivo era compor uma estrutura inusitada.

A vizinhança do tigre, de Affonso Uchoa, é um documentário sobre quatro jovens moradores do Bairro Nacional, na periferia de Contagem.

O bagre africano de Ataleia, de Aline X e Gustavo Jardim, traz referências do gênero fantástico (Bernard Machado/Divulgação)
O bagre africano de Ataleia, de Aline X e Gustavo Jardim, traz referências do gênero fantástico


Amadorismo e liberdade


Além de diretora, Ana Moravi é pesquisadora de cinema há cinco anos. Na dissertação de mestrado, que foi publicada como livro, analisou o cinema mineiro feito entre 2000 e 2010. Como observou, além das influências de outras artes e da busca por novas narrativas, trata-se de safra feita por gente que se interessa em estudar a linguagem e tem muitas referências. A cinefilia contribui para a construção de algo diferente.

“Acho que a gente vive uma profusão muito grande na produção de imagens. A primeira sensação que dá é um mito contemporâneo: se A mais B é igual a C, o negócio é misturar o que já foi feito, o que vai dar uma coisa nova”, acredita a jovem cineasta. Como ela ressalta, passada a época em que a escolha de um determinado negativo influenciava o resultado do filme, hoje a autoria se volta para outras questões.

 “Vira um desafio para quem é pesquisador e realizador fugir dos padrões. O cinema mineiro sempre buscou isso”, afirma. “As produções mineiras são viabilizadas de forma independente, com recursos próprios ou com baixos orçamentos dos editais governamentais. Fazer filmes em Minas é uma forma de resistência. Há uma liberdade que vem deste amadorismo, não há necessidade de concessões de nenhum tipo, não se busca o mercado, se faz arte como necessidade expressiva e com os recursos disponíveis”, resumem Aline X e Gustavo Jardim.

Mostra de cinema de Tiradentes 

De 24 de janeiro a 1º de fevereiro, em Tiradentes. Entrada franca. Informações: www.mostratiradentes.com.br

A comédia Aliança é dirigida e estrelada por Gabriel Martins, João Toledo e Leonardo Amaral (Filmes de Plástico/Divulgação)
A comédia Aliança é dirigida e estrelada por Gabriel Martins, João Toledo e Leonardo Amaral


Mostra Aurora

» A mulher que amou o vento, de Ana Moravi
» A vizinhança do tigre, de Affonso Uchoa
» Aliança, de Gabriel Martins, João Toledo e Leonardo Amaral
» O bagre africano de Ataleia, de Aline X e Gustavo Jardim

Mostra Autorias


» O homem das multidões, de Cao Guimarães e Marcelo Gomes


Meu cinema é...

“Experimental, independente e poético”
Ana Moravi
diretora de A mulher que amou o vento

“Diversão, em todos os sentidos possíveis”
Gabriel Martins
diretor de Aliança

“Caça”
Aline X e Gustavo Jardim


Curtas mineiros marcam presença



Curta Nossa pintura, de Fábio Nascimento, se aproxima da cultura indígena de forma direta e sem clichês

A programação de curtas-metragens da Mostra de Cinema de Tiradentes terá 98 trabalhos este ano. Destes, 25 são filmes produzidos em Minas Gerais. O cinema assinado por novos diretores do interior do estado também mostra a cara em Tiradentes. Natural de Ipatinga, ex-aluno da Universidade Federal de Juiz de Fora, com formação na França, Fábio Nascimento mostrará Nossa pintura na competitiva Foco. Rodado no Sul do Pará, o filme de 24 minutos mostra a tradição da pintura dos corpos dos índios mebêngôkre-kayapó.

Pela segunda vez entre os selecionados para Tiradentes, Fábio, atualmente radicado em São Paulo, acredita que as diferenças de produzir cinema na capital ou no interior são cada vez menores. “Comecei trabalhando quando estava no interior. Isso não seria uma peculiaridade, porque não é um mercado muito fácil”, diz. Para Fábio, Nossa pintura é uma tentativa de filmar o povo indígena sem clichês. “A gente tentou de alguma maneira documentar como qualquer pessoa”, explica.

Mineiro de Cruzeiro da Fortaleza, mas radicado em Uberlândia, Cássio Pereira dos Santos terá seu quinto trabalho, Marina não vai à praia, exibido em Tiradentes. Ele, que já morou em Brasília, é realizador resistente no interior de Minas. “Quando voltei para o interior, já tinha algumas portas abertas em diversas cidades, por já ter trabalhado com audiovisual por alguns anos. Mas na hora de filmar as coisas se complicam um pouco, porque a logística fica mais cara e complicada, pois há longos deslocamentos de equipamento e equipe”, conta.

O negócio de Cássio é essencial: contar uma história simples. “No meu primeiro curta, que passou em Tiradentes nove anos atrás, lembro que a primeira conversa que tive com o fotógrafo foi que não usaríamos plano e contraplano, porque achava isso muito careta, com cara de televisão. Neste novo projeto trabalhei com o mesmo fotógrafo, meu amigo Leonardo Feliciano, e o que o filme mais tem é plano e contraplano. Esse negócio de pesquisa de linguagem às vezes vira um tédio e aí dá uma vontade de contar uma história simples, sem ficar preocupado com inovação”, completa. (CB)

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