Utopia de Morus
Frei Betto
Esatado de Minas: 19/02/2014
O poder, devido às premências do presente, faz com que se perca a
visão de futuro. E o poderoso tende a perpetuar-se no cargo
João
Paulo II consagrou, em 2000, o inglês Thomas Morus (1478-1535)
padroeiro dos políticos. Fez boa escolha, considerada a ambiguidade da
maioria dos políticos. Canonizado em 1935 pelo papa Pio XI e pouco
conhecido por sua suposta santidade, Morus é famoso por ser autor de um
livro clássico, Utopia (1516), termo que cunhou a partir do grego
utopos, que significa “lugar nenhum”.
Morus inspirou-se em
Luciano, satírico grego do século 2, autor de História verdadeira, e em
Erasmo, de quem era amigo, autor de Elogio da loucura (1511), que, em
carta enviada a Morus, afirmou que “gracejos podem levar a algo mais
sério”. É o que faz a boa literatura de nosso Veríssimo.
Em sua
obra, Morus descreve a comunidade de uma ilha onde não havia dinheiro
nem propriedade privada; admitiam-se adoradores do Sol e da Lua. “Todos
eram livres para praticar a religião que bem entendessem, e tentar
converter as outras pessoas para a sua própria fé, desde que o fizessem
tranquila e educadamente, por meio de argumento racional.”
Tinha o
autor por objetivo protestar contra as injustiças da Inglaterra de sua
época: pobreza generalizada, criminalidade (e apelos à redução da
maioridade penal…), pena de morte para quem furtava para matar a fome.
“Vocês ingleses” – diz o narrador da Utopia – “me fazem lembrar os
professores incompetentes, que preferem reprovar os seus alunos que
ensinar-lhes. Em vez de infligir essas punições horríveis, seria muito
mais adequado proporcionar a todos algum meio de sobrevivência, de modo
que ninguém se encontrasse sob a horripilante necessidade de se tornar,
primeiramente, um ladrão, e depois um cadáver.”
Na ilha de Morus
“todos recebem uma porção justa, de modo a não haver jamais pobres ou
mendigos. Ninguém é proprietário de nada, mas todos são ricos – afinal,
que riqueza maior pode haver que a alegria, a paz de espírito e estar
livre da angústia?”
Dois fatores fizeram Morus renegar suas
antigas ideias: a Reforma de Lutero e a sua nomeação a funcionário real,
em 1518. Picado pela mosca azul, o poder lhe subiu à cabeça. Logo foi
promovido a “conselheiro teológico” e, em 1529, nomeado lorde chanceler
de Henrique VIII.
O que ele antes via como desejável, agora que
chegara ao poder lhe parecia perigoso. Preferiu esquecer o que pregou e
escreveu. Embora a comunidade da Utopia assemelhe-se ao comunismo,
Morus, inimigo da Reforma, passou a atacar a vida comum dos anabatistas
como terrível heresia, e tomou a defesa dos ricos proprietários de
terras.
Lorde Morus proibiu mais de 100 livros, perseguiu quem
não professava a fé católica, entre os quais o teólogo protestante
William Tyndale, que traduziu a Bíblia para o inglês. Segundo seu
biógrafo, John Guy, Morus aplicava severamente as leis que decretava:
“Vendedores de livros eram multados e presos, e seus estoques de
literatura herética queimados em praça pública”, e eles obrigados a
desfilar em feiras livres, cavalgando de costas, para que o povo lhes
atirasse frutas podres.
No epitáfio que cunhou para si mesmo,
Morus afirmava orgulhoso ter sido um “perseguidor de ladrões, assassinos
e hereges”. O último termo foi suprimido na reforma de seu túmulo, no
século 19.
Em 1533, Henrique VIII separou-se de Catarina de
Aragão, apaixonado que estava por Ana Bolena. Como Roma lhe negou a
anulação do casamento, a fim de legalizar seu divórcio e sacramentar o
novo matrimônio perante a Igreja, o rei transferiu para si a autoridade
do papa e fundou a Igreja Anglicana. Por se recusar a aceitar Ana Bolena
como rainha da Inglaterra e ficar do lado do papa Clemente VII, que
excomungou Henrique VIII, Morus foi decapitado em 1535.
O poder é
antiutópico ou distópico por natureza? Por que, hoje, tantos que
outrora elevavam sua voz contra a exploração do capital e desfraldavam
bandeiras progressistas, de leões bravios tornaram-se dóceis cordeiros
do rebanho neoliberal?
Penso que o poder, devido às premências do
presente, faz com que se perca a visão de futuro. E, como o poderoso
tende a perpetuar-se no cargo (vide as velhas raposas da política
brasileira), procura reduzir o processo histórico a seu momento pessoal.
Julga-se início e fim, sem consciência de que não passa de mediador
(meio) de um mandato popular.
Daí o risco de transformar-se numa
figura ridícula, sem honra biográfica, mera caricatura de suas ambições
desmedidas. Em sua pobre topia, não há mais lugar para a utopia.
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