Uma vida não fascista
Assim como Foucault foi buscar sua turma no mundo antigo, precisamos encontrar amigos dispostos a virar a mesa
João Paulo
Estado de Minas: 22/03/2014
Michel Foucault detestava o poder. Ele estava certo: o poder é detestável |
Houve
um tempo em que parecia mais fácil tomar decisões: o certo e o errado
eram atravessados por juízos de natureza moral e política bastante
universais e unívocos. Todos são contra a violência, o preconceito, a
discriminação e a injustiça. E a favor da liberdade, da tolerância e do
progresso. Ser adversário do nazismo, durante a guerra, era uma posição
nobre, mas altamente compartilhável. Hoje, com o cenário mais complexo e
o fim das identidades mecânicas, deixou de existir um inimigo comum. A
forma como escolhemos viver, é responsabilidade que nasce com cada um.
O que parece uma observação simples, na verdade carrega um grande potencial transformador. Poucas vezes na história o homem teve tanta liberdade para erigir seu próprio destino. E é por isso que a observação do pensador francês Michel Foucault (1926-1984), instigando as pessoas a viver a vida de forma artística, é tão pertinente. Não precisamos ser gado, submetido às demandas da coletividade, nem muito menos individualistas desconectados dos projetos sociais mais abrangentes. Existe saída entre esses dois equívocos.
Foi na introdução que escreveu para o livro O anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Felix Guattari, que Foucault defendeu o que chamou de “uma vida não fascista”. Para o pensador, que foi o maior crítico do poder do nosso tempo, o fascismo se insinua no tecido da vida cotidiana, enfraquecendo a existência, tirando a seiva da criatividade, impondo o reino da repetição, da obediência e da norma. Não existe receita para fugir do fascismo dos dias comuns a não ser a coragem de inventar modos de vida, de esculpir a trajetória com projetos individuais e coletivos que engrandeçam nossa presença no mundo.
Há um caminho de mão dupla nessa história toda. Como sujeito, precisamos ser capazes de honrar a vida com exercícios de dignidade coletiva. A política é uma das formas mais elaboradas de construção do destino pessoal. Por outro lado, como participantes de um terreno de compartilhamento social, não podemos aceitar as regras sem que elas passem pelo crivo de nossa afetividade. A própria democracia precisa ser enriquecida com críticas e confrontada com seus limites.
Por isso, para Foucault, a crítica ao poder é um estágio necessário à invenção de novos modos de existência. O pensador demonstrou como somos contidos em nossos impulsos pela disciplina, pela submissão e pela docilidade. Mostrou como as regras existem para afirmar o poder, como o corpo se torna sede de projetos de dominação e de que forma o próprio saber tem elementos autoritários. Seu pensamento tratou de mostrar esses vínculos e propor formas de descontruí-los. Fez isso com a psicologia, a medicina e o direito. Deixou para o fim o maior dos desafios: tirar as nódoas do poder da vida do indivíduo.
Em sua obra, curiosamente, ao chegar ao tema do cuidado de si e dos projetos de existência artística, o pensador volta no tempo, buscando inspiração na Roma e na Grécia Antiga. Seus últimos livros, os três volumes da História da sexualidade, defendem a força expressiva do sexo, muito além do discurso tradicional da repressão. Foucault vai se alinhar a diversos projetos libertários no campo do comportamento e da política. Para isso, precisou destronar os comissários do poder, dos militantes sombrios aos técnicos do desejo (entre eles os orgulhosos psicanalistas e semiólogos). O filósofo foi procurar sua turma. E incitou quem desejava uma vida livre e autônoma a fazê-lo por suas próprias pernas e ideias. O não fascista é um sujeito que se arrisca.
QUE FAZER Qual seria, hoje, um programa de sobrevivência não fascista na selva do mundo do consumo? Em primeiro lugar, a recusa destemida da invasão operada pelos meios de comunicação digital, as ditas redes sociais. Eles não são radiais – já que têm um centro de onde partem ordenamentos poderosos – e muito menos sociais, já que existem exatamente para elidir o contato humano. Mas o conteúdo propriamente fascista desses instrumentos está em sua tendência à invasão da privacidade e transformação da intimidade em mercadoria.
O Facebook, por exemplo, nada mais é que uma plataforma de exibicionismo de vidas fracas, que permite ao seu proprietário negociar com informações que geram expectativa de consumo. Ao se submeter voluntariamente ao poder, na forma de mercadoria para listagens de consumidores virtuais, o “Face” deixa de ser uma ferramenta de contato para ser um banco de dados acessável apenas em uma das pontas. Sempre que o poder viaja em mão única e é capaz de submeter o outro sem possibilidade de defesa, se instaura uma relação de tipo fascista.
Outro elemento fascista do cotidiano é a uniformização da estética corporal. A atual exigência de corpo magro e flexível, que ideologicamente regride à época da eugenia higienista, instaura uma pedagogia totalitária sobre o corpo. O chamado bem-estar, além de se tornar uma mercadoria rentável, tem se transformado em matéria de políticas públicas, com tudo que carregam de judicativas e redentoras. Além de discriminar os diferentes corpos, jogam sobre os que fogem ao padrão comercial a pecha de preguiçosos e fracassados. A vigilância sobre os corpos, assim, deixa de ser estética e santiária para se revelar política.
Não é casual que essas políticas ganhem sempre o nome militar de “campanhas”. Elas se estruturam em bloco, como numa guerra, reunindo setores da educação e da cultura, incorporando a defesa do estilo de vida a comportamentos típicos da sociedade competitiva: combate aos vícios de toda a natureza (inclusive o ócio, tomado como defeito moral), estímulo a derrotar o próximo, capacidade renovável de produção. O corpo magro, ativo e consumista (das proteínas sintetizadas que transformam alimento em remédios aos exames de chek-up que assumem caráter de classe, quanto mais rico maior o protocolo), cria padrões inviáveis e operativos para o mercado. A revolução que se aproxima não perdoa nem mesmo o DNA, propondo até mesmo a extirpação de órgãos sadios em nome de uma eventualidade estatística.
A vida não fascista abrange vários outros campos do cotidiano. Está presente nas estratégias de desobediência civil; na recusa de rebaixar o cidadão a consumidor; na crítica de certos tratamentos psicoterápicos que reforçam a arrogância; na defesa da política como forma civil de amizade; na recusa obstinada de servir; no enfrentamento de todas as estratégias elementares de poder. Até mesmo na recusa em torcer para times de futebol que trocaram a arte pelo comércio; em assistir filmes testados por público adolescente; ou no comportamento altivo de quem se recusa a comprar mercadorias produzidas por empresas desleais, exploradoras dos trabalhadores, poluidoras ou que foram privatizadas contra o interesse público.
Assim como Foucault foi buscar sua turma no mundo antigo, precisamos encontrar amigos dispostos a virar a mesa.
A provocação de Foucault acerca da boa vida já foi tema de um seminário realizado em 2008 na Unicamp. Gerou um livro interessante e provocador, Para uma vida não-fascista, organizado por Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto, lançado pela Editora Autêntica, com quase 500 páginas de boas ideias libertárias. Vale a pena.
O que parece uma observação simples, na verdade carrega um grande potencial transformador. Poucas vezes na história o homem teve tanta liberdade para erigir seu próprio destino. E é por isso que a observação do pensador francês Michel Foucault (1926-1984), instigando as pessoas a viver a vida de forma artística, é tão pertinente. Não precisamos ser gado, submetido às demandas da coletividade, nem muito menos individualistas desconectados dos projetos sociais mais abrangentes. Existe saída entre esses dois equívocos.
Foi na introdução que escreveu para o livro O anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Felix Guattari, que Foucault defendeu o que chamou de “uma vida não fascista”. Para o pensador, que foi o maior crítico do poder do nosso tempo, o fascismo se insinua no tecido da vida cotidiana, enfraquecendo a existência, tirando a seiva da criatividade, impondo o reino da repetição, da obediência e da norma. Não existe receita para fugir do fascismo dos dias comuns a não ser a coragem de inventar modos de vida, de esculpir a trajetória com projetos individuais e coletivos que engrandeçam nossa presença no mundo.
Há um caminho de mão dupla nessa história toda. Como sujeito, precisamos ser capazes de honrar a vida com exercícios de dignidade coletiva. A política é uma das formas mais elaboradas de construção do destino pessoal. Por outro lado, como participantes de um terreno de compartilhamento social, não podemos aceitar as regras sem que elas passem pelo crivo de nossa afetividade. A própria democracia precisa ser enriquecida com críticas e confrontada com seus limites.
Por isso, para Foucault, a crítica ao poder é um estágio necessário à invenção de novos modos de existência. O pensador demonstrou como somos contidos em nossos impulsos pela disciplina, pela submissão e pela docilidade. Mostrou como as regras existem para afirmar o poder, como o corpo se torna sede de projetos de dominação e de que forma o próprio saber tem elementos autoritários. Seu pensamento tratou de mostrar esses vínculos e propor formas de descontruí-los. Fez isso com a psicologia, a medicina e o direito. Deixou para o fim o maior dos desafios: tirar as nódoas do poder da vida do indivíduo.
Em sua obra, curiosamente, ao chegar ao tema do cuidado de si e dos projetos de existência artística, o pensador volta no tempo, buscando inspiração na Roma e na Grécia Antiga. Seus últimos livros, os três volumes da História da sexualidade, defendem a força expressiva do sexo, muito além do discurso tradicional da repressão. Foucault vai se alinhar a diversos projetos libertários no campo do comportamento e da política. Para isso, precisou destronar os comissários do poder, dos militantes sombrios aos técnicos do desejo (entre eles os orgulhosos psicanalistas e semiólogos). O filósofo foi procurar sua turma. E incitou quem desejava uma vida livre e autônoma a fazê-lo por suas próprias pernas e ideias. O não fascista é um sujeito que se arrisca.
QUE FAZER Qual seria, hoje, um programa de sobrevivência não fascista na selva do mundo do consumo? Em primeiro lugar, a recusa destemida da invasão operada pelos meios de comunicação digital, as ditas redes sociais. Eles não são radiais – já que têm um centro de onde partem ordenamentos poderosos – e muito menos sociais, já que existem exatamente para elidir o contato humano. Mas o conteúdo propriamente fascista desses instrumentos está em sua tendência à invasão da privacidade e transformação da intimidade em mercadoria.
O Facebook, por exemplo, nada mais é que uma plataforma de exibicionismo de vidas fracas, que permite ao seu proprietário negociar com informações que geram expectativa de consumo. Ao se submeter voluntariamente ao poder, na forma de mercadoria para listagens de consumidores virtuais, o “Face” deixa de ser uma ferramenta de contato para ser um banco de dados acessável apenas em uma das pontas. Sempre que o poder viaja em mão única e é capaz de submeter o outro sem possibilidade de defesa, se instaura uma relação de tipo fascista.
Outro elemento fascista do cotidiano é a uniformização da estética corporal. A atual exigência de corpo magro e flexível, que ideologicamente regride à época da eugenia higienista, instaura uma pedagogia totalitária sobre o corpo. O chamado bem-estar, além de se tornar uma mercadoria rentável, tem se transformado em matéria de políticas públicas, com tudo que carregam de judicativas e redentoras. Além de discriminar os diferentes corpos, jogam sobre os que fogem ao padrão comercial a pecha de preguiçosos e fracassados. A vigilância sobre os corpos, assim, deixa de ser estética e santiária para se revelar política.
Não é casual que essas políticas ganhem sempre o nome militar de “campanhas”. Elas se estruturam em bloco, como numa guerra, reunindo setores da educação e da cultura, incorporando a defesa do estilo de vida a comportamentos típicos da sociedade competitiva: combate aos vícios de toda a natureza (inclusive o ócio, tomado como defeito moral), estímulo a derrotar o próximo, capacidade renovável de produção. O corpo magro, ativo e consumista (das proteínas sintetizadas que transformam alimento em remédios aos exames de chek-up que assumem caráter de classe, quanto mais rico maior o protocolo), cria padrões inviáveis e operativos para o mercado. A revolução que se aproxima não perdoa nem mesmo o DNA, propondo até mesmo a extirpação de órgãos sadios em nome de uma eventualidade estatística.
A vida não fascista abrange vários outros campos do cotidiano. Está presente nas estratégias de desobediência civil; na recusa de rebaixar o cidadão a consumidor; na crítica de certos tratamentos psicoterápicos que reforçam a arrogância; na defesa da política como forma civil de amizade; na recusa obstinada de servir; no enfrentamento de todas as estratégias elementares de poder. Até mesmo na recusa em torcer para times de futebol que trocaram a arte pelo comércio; em assistir filmes testados por público adolescente; ou no comportamento altivo de quem se recusa a comprar mercadorias produzidas por empresas desleais, exploradoras dos trabalhadores, poluidoras ou que foram privatizadas contra o interesse público.
Assim como Foucault foi buscar sua turma no mundo antigo, precisamos encontrar amigos dispostos a virar a mesa.
A provocação de Foucault acerca da boa vida já foi tema de um seminário realizado em 2008 na Unicamp. Gerou um livro interessante e provocador, Para uma vida não-fascista, organizado por Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto, lançado pela Editora Autêntica, com quase 500 páginas de boas ideias libertárias. Vale a pena.
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