Segredos do porão
Livro de contos de Otto Lara Resende, Boca do inferno é um mergulho no lado sombrio da infância. Romances sobre jovens desajustados permitem olhar atento sobre o mundo
João Paulo
Estado de Minas: 22/03/2014
Otto Lara Resende publicou poucos livros, mas deixou obra madura, que desafia os leitores |
O livro, lançado em 1957, teve reação negativa da crítica e dos intelectuais da época (se tornou quase um caso, mais que um livro). Com poucas vozes em sua defesa e até mesmo o episódio – meio mítico – da troca de longas cartas entre o escritor e seu pai, que julgou a coletânea de histórias indignas de um educador, Otto ficou agastado, esbravejou com os amigos e decidiu nunca mais editar o livro em vida.
Em 1998, seis anos depois da morte do contista, o volume ganhou nova edição. A repercussão foi outra: tratava-se de obra-prima dada à luz antes do tempo, o que explicava a rejeição emocional. Agora, novamente de volta às livrarias, em edição da Companhia das Letras com direito a um importante ensaio de Augusto Massi, Boca do inferno pode ser lido privado da incompreensão ideológica e literária da época de seu lançamento, e de certo caráter redentor de sua primeira reedição póstuma.
O que causou tanto espanto no livro, de modo a convocar tanta ira dos críticos e comportamento evasivo por parte do autor? Otto Lara Resende ataca, de uma vez só, várias certezas estéticas e, sobretudo, humanas. Seus personagens, embora muito jovens, são capazes de extremos de maldade, chegando a crimes e perversões. Não se trata de momentos da narrativa, mas do tema em si de todos os contos.
As sete histórias têm em seu centro um momento marcante de passagem entre o destino biológico e as demandas da cultura. As crianças amadurecem sempre em meio a eventos traumáticos, com desfechos inapelavelmente trágicos e violentos, seja em relação ao outro ou a si mesmo. A tensão vai sendo construída com cuidado, sem julgamentos, com frieza quase clínica levada a cabo pela mera observação exterior.
Para o romancista Cristóvão Tezza, que fez uma das boas leituras de Boca do inferno, “cada um dos contos flagra uma criança num momento-limite de transformação, uma espécie de rito de passagem do puro ‘ser biológico’, fisicamente integrado ao mundo (...) para o ‘ser ético’, aquele que numa situação extrema escolhe o que fazer, empurrado por uma rede agressiva de circunstâncias”.
Otto Lara Resende não era autor estreante, já havia publicado outra reunião de contos em 1952, O lado humano. Do primeiro livro, o que ficou foi a linguagem clássica, o senso de observação, a sensibilidade para o ambiente moral. Mas Boca do inferno traz transformações importantes além da escolha dos personagens, que é sua face mais visível. Em primeiro lugar na ambientação, quase rural (o primeiro livro era urbano), como forma de esvaziar as contingências do tempo, num cenário onde nada acontece.
E, ainda, pelo estilo mais sofisticado, capaz de flagrar o inferno da infância sem julgamentos e sem contar com a reflexão dos próprios personagens, ocupados em viver, não em narrar. Tudo é conciso demais, cada palavra pesa no conjunto da narrativa e pode ser a única oportunidade de compreender os rumos imprevistos da ação. Nesse sentido, quase não há psicologia, o que seria uma invasão em território até então definido pelo espanto da descoberta dos limites do bem e do mal.
Não é possível resumir as histórias, já que elas se constroem com uma integridade que qualquer artifício destruiria. São pequenas joias de areia, onde o brilho e a opacidade se dão nas sutilezas da linguagem. O conto que abre o livro, “O filho do padre”, como indica o título, traz uma história que remete à formação brasileira, com sua implícita vocação para a ilegitimidade, mas o fim aponta outras características nem sempre consideradas nessa tradição, sobretudo nas certezas pedagógicas fundadas na violência.
“Namorado morto” descreve a paixão de uma jovem de 11 anos por um colega, em meio a um erotismo feito de símbolos e da presença da morte. “Três pares de patins”, também em cenário que evoca cemitérios e igrejas, descreve com sutileza sutis relações de poder que conduzem à perversão sexual. Há nas outras histórias muitos segredos e mentiras, que se consumam em violências, castração, crime, incesto e suicídio.
No conto mais bem realizado, “O porão”, Otto Lara Resende, com cuidado e sem pressa, refaz o teatro da relação do homem com seus limites, numa narrativa de encontro entre dois jovens no momento da revelação de um segredo ou de uma demasia da vida. O que nos outros contos é sociologia do Brasil arcaico ou psicologia da adolescência, em “O porão” se revela como metafísica da perversidade.
A se destacar na nova edição o excelente posfácio de Augusto Massi, “Narrador de tocaia”. São quase 70 páginas de informações (um estudo completo da recepção do livro), literatura comparada e fina análise de cada conto, com uso de recursos da estilística, da filosofia e da psicanálise, sem o menor peso acadêmico ou pretensão. Uma aula de crítica literária, dessas – muito raras – que se somam à obra e passam a fazer parte dela.
DELINQUENTES O jovem delinquente e perverso é bom personagem não é de hoje. Eles rendem histórias alegóricas sobre o mal, como O senhor das moscas, de William Golding; de perversão, como Lolita, de Nabokov; de distopia social, como Laranja mecânica, de Anthony Burgess; de descoberta do mal, como O condenado, de Graham Greene; ou de pura descrição objetiva da amoralidade, como Sangue na neve, de Georges Simenon.
Mas o filão não cessa e vai ganhando novas características a cada tempo. É o caso de dois romances lançados recentemente no Brasil. O primeiro é As leis da fronteira, do espanhol Javier Cercas. Ambientado em Girona, o livro narra a história de um delinquente célebre nos anos 1970, Zarco, que tem sua vida pesquisada por um escritor, que pretende escrever um livro sobre ele.
Para isso, o autor vai atrás dos amigos de Zarco, entre eles o advogado Ignácio Cañas, companheiro de fliperama a badernas. Mesmo companheiros, há uma distinção de origem social, que não só separa os amigos como determina de certa forma seus destinos. Preso, Zarco se torna uma espécie de celebridade, paparicado por jornalistas, além de permanecer como símbolo de uma era, não sem certa aura de romantismo
Ao retroceder no tempo, o livro, que vai sendo montado à frente do leitor, investiga tanto os aspectos humanos do personagem como a passagem do tempo, a mudança da sociedade espanhola no período (do pós-guerra ao pós-modernismo) e a força corrosiva dos meios de comunicação, em sua sanha de erigir heróis e inimigos públicos. A busca da verdade acaba por criar um clima de ambiguidade, não apenas sobre o passado que se quer reconstruir, mas sobre as próprias bases que parecemos escolher para sustentar nosso presente.
Outro romance que se aproxima de personagens jovens e arruaceiros é Lionel Asbo, do inglês Martin Amis. O sobrenome do herói da trama diz tudo: Asbo é uma sigla em inglês para “condição de comportamento antissocial”. Lionel mora no distrito fictício de Diston Town, tem 21 anos, vive de pequenos crimes e adora distribuir porrada em quem atravessa seu caminho, que costuma trilhar sempre na companhia de dois pitbulls, Joe e Jeff, suas “ferramentas de trabalho”. Lionel é apenas um dos Pepperdine. São todos da pesada.
A continuidade do clã está na mão de Desmond, sobrinho de Lionel, que tem sua iniciação sexual com a avó (que é muito jovem) e, aos 15 anos, está maduro o suficiente para entender toda a família. E se preocupar com ela, sobretudo com tio criminoso. Tudo muda com a entrada em cena de um prêmio de loteria, com a capacidade agregadora (é claro que não pelos bons motivos) e dissipadora do dinheiro numa sociedade de consumo e aparência.
Em tom de sátira, Amis revela uma Inglaterra que trocou a tradição pelos tabloides e hordas de hooligans (numa simbiose perfeita entre os dois, diga-se de passagem). Há algo de dickensiano em Lionel Asbo, seja na narrativa em forma de crônica da dissipação de valores, seja na escolha dos personagens marginalizados, tratados com uma simpatia cabotina. Quem defende que o dinheiro traz felicidade não vai ser acossado por argumentos moralistas. Na verdade, vai confirmar suas suspeitas.
Não é um acaso que personagens assim estejam em alta. Eles são parte de nossa história humana. A forma como são representados hoje, em meio a um misto de horror e atração, sobretudo quando entram em cena valores como celebridade e grana, é que diz melhor de nosso tempo. Não são os delinquentes que nos definem. Está bem perto de ser exatamente o contrário.
BOCA DO INFERNO
. De Otto Lara Resende
. Editora Companhia das Letras, 190 páginas, R$ 32
AS LEIS DA FRONTEIRA
. De Javier Cercas
. Biblioteca Azul, 430 páginas, R$ 49,90
LIONEL ASBO
. De Martin Amis
. Editora Companhia das Letras, 354 páginas, R$ 49
Nenhum comentário:
Postar um comentário