MARINA COLASANTI »
Philomena lava roupa
Estado de Minas: 13/03/2014
O que é exatamente uma comédia dramática? Suponho seja o tom sorridente utilizado para narrar um fato dramático. Assim está indicado o filme Philomena – e o cartaz de apresentação não deixa dúvidas: Judi Dench olha risonha para Steve Coogan, que, cúmplice, ergue uma sobrancelha.
Quem terá dado esse tom a eventos tão terríveis? Philomena Lee, a personagem real que os viveu, Martin Sixsmith, o correspondente da BBC que em 2009 os escreveu no livro-reportagem O filho perdido de Philomena Lee, ou Stephen Frears, que dirigiu o filme? O fato de Philomena Lee estar presente na cerimônia do Oscar nos diz que ela estava de acordo, melhor sorrir do que chorar.
A mãe de Samantha Long e de sua irmã gêmea Etta Thornton-Verna deve ter tido poucos motivos para sorrir ao longo dos anos todos que passou lavando roupa sob o comando das freiras. Quando as filhas a encontraram, em 1995, continuava com a mesma função numa Lavanderia Madalena, em Dublim. Não tinha outro lugar para ir e não havia aprendido a viver a vida de outra maneira. Trancada e entregue às religiosas, havia engravidado duas vezes, provavelmente por estupro, e tanto as gêmeas como a outra criança lhes haviam sido tomadas e dadas em adoção. Tinha 42 anos quando reencontrou as filhas, e parecia velhíssima. Nunca havia ganho um tostão pelo seu trabalho. Morreu anos mais tarde, de síndrome de Goodpasture, um mal associado à intoxicação por elementos químicos presentes nos produtos para lavar roupa.
Foi por causa das mortas, e não das vivas, que o escândalo das jovens irlandesas aprisionadas pela religião e pelos bons costumes aflorou. E aflorar é o termo justo. Quando, em 1993, uma das ordens religiosas conhecidas pelo bom trato das roupas vendeu sua antiga sede, as escavadeiras ou pás da construtora revelaram os corpos de 155 mulheres enterradas sem identificação.
Philomena, o filme, está centrado na busca do filho perdido, uma história que, à medida que Sixsmith investigava, ia se revelando surpreendentemente circular. Fosse apenas um roteiro, diríamos até que é redondo demais e caridoso demais. Mas são fatos reais, em que a vida traça curvas inesperadas.
Não era intenção de Stephen Frears fazer um filme – denúncia – já feito em 2002 por Peter Mullan, Em nome de Deus – nem um documentário – como o Forgotten Maggies de Steven O’Riordan, de 2009 – e sim contar, sem dramatizar, uma das tantas histórias geradas pelas lavanderias Madalena. Não fica claro, portanto, como as adolescentes ou meninas iam parar nas garras de uma das quatro ordens religiosas que as geriam. Nem por que, exatamente.
Iam mandadas pelas famílias por questões morais ou mesmo por ter temperamento independente, iam entregues pela polícia por ter cometido pequenos delitos ou encaminhadas pelos serviços sociais por ser órfãs ou abandonadas. Estado e famílias bem pensantes se davam as mãos. E a roupa que as jovens lavavam, de hospitais públicos, do Exército, de universidades, de instituições e de particulares, saía limpa e gerava bom lucro.
As santas freiras não podiam imaginar que seu crime seria denunciado em livros, peças e filmes, e muito menos que acabaria na comissão da ONU contra a tortura. Infelizmente, podiam prever que nem a Igreja nem o Estado pediriam perdão.
>> marinacolasanti.s@gmail.com
Estado de Minas: 13/03/2014
O que é exatamente uma comédia dramática? Suponho seja o tom sorridente utilizado para narrar um fato dramático. Assim está indicado o filme Philomena – e o cartaz de apresentação não deixa dúvidas: Judi Dench olha risonha para Steve Coogan, que, cúmplice, ergue uma sobrancelha.
Quem terá dado esse tom a eventos tão terríveis? Philomena Lee, a personagem real que os viveu, Martin Sixsmith, o correspondente da BBC que em 2009 os escreveu no livro-reportagem O filho perdido de Philomena Lee, ou Stephen Frears, que dirigiu o filme? O fato de Philomena Lee estar presente na cerimônia do Oscar nos diz que ela estava de acordo, melhor sorrir do que chorar.
A mãe de Samantha Long e de sua irmã gêmea Etta Thornton-Verna deve ter tido poucos motivos para sorrir ao longo dos anos todos que passou lavando roupa sob o comando das freiras. Quando as filhas a encontraram, em 1995, continuava com a mesma função numa Lavanderia Madalena, em Dublim. Não tinha outro lugar para ir e não havia aprendido a viver a vida de outra maneira. Trancada e entregue às religiosas, havia engravidado duas vezes, provavelmente por estupro, e tanto as gêmeas como a outra criança lhes haviam sido tomadas e dadas em adoção. Tinha 42 anos quando reencontrou as filhas, e parecia velhíssima. Nunca havia ganho um tostão pelo seu trabalho. Morreu anos mais tarde, de síndrome de Goodpasture, um mal associado à intoxicação por elementos químicos presentes nos produtos para lavar roupa.
Foi por causa das mortas, e não das vivas, que o escândalo das jovens irlandesas aprisionadas pela religião e pelos bons costumes aflorou. E aflorar é o termo justo. Quando, em 1993, uma das ordens religiosas conhecidas pelo bom trato das roupas vendeu sua antiga sede, as escavadeiras ou pás da construtora revelaram os corpos de 155 mulheres enterradas sem identificação.
Philomena, o filme, está centrado na busca do filho perdido, uma história que, à medida que Sixsmith investigava, ia se revelando surpreendentemente circular. Fosse apenas um roteiro, diríamos até que é redondo demais e caridoso demais. Mas são fatos reais, em que a vida traça curvas inesperadas.
Não era intenção de Stephen Frears fazer um filme – denúncia – já feito em 2002 por Peter Mullan, Em nome de Deus – nem um documentário – como o Forgotten Maggies de Steven O’Riordan, de 2009 – e sim contar, sem dramatizar, uma das tantas histórias geradas pelas lavanderias Madalena. Não fica claro, portanto, como as adolescentes ou meninas iam parar nas garras de uma das quatro ordens religiosas que as geriam. Nem por que, exatamente.
Iam mandadas pelas famílias por questões morais ou mesmo por ter temperamento independente, iam entregues pela polícia por ter cometido pequenos delitos ou encaminhadas pelos serviços sociais por ser órfãs ou abandonadas. Estado e famílias bem pensantes se davam as mãos. E a roupa que as jovens lavavam, de hospitais públicos, do Exército, de universidades, de instituições e de particulares, saía limpa e gerava bom lucro.
As santas freiras não podiam imaginar que seu crime seria denunciado em livros, peças e filmes, e muito menos que acabaria na comissão da ONU contra a tortura. Infelizmente, podiam prever que nem a Igreja nem o Estado pediriam perdão.
>> marinacolasanti.s@gmail.com
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