sexta-feira, 27 de junho de 2014

CARLOS HERCULANO LOPES » O último encontro‏

Estado de Minas: 27/06/2014 



Há poucos dias, de folga no trabalho, fui surpreendido na minha casa, onde deixava o tempo passar, com a notícia da morte de Rose Marie Muraro, no Rio de Janeiro. Ela estava com 83 anos, deixava cinco filhos, 12 netos e quatro bisnetos, além de mais de 40 livros, de gêneros diversos, como Sexualidade da mulher brasileira. Publicado em 1983, causou furor, saiu em várias línguas, e já é um clássico.

Foi ainda a precursora do feminismo no país, militante nas lutas contra a ditadura, e responsável, durante bom tempo, pelo catálogo de várias editoras, entre elas a Vozes, Espaço e Tempo, e Record. Entre dezenas de autores lançados por ela, um deles foi Leonardo Boff, a quem ajudou a traçar as diretrizes básicas da Teologia da Libertação, que causou uma verdadeira revolução dentro da Igreja Católica.

Tudo isso, enquanto ouvia comovido as notícias da sua morte, que repercutiu Brasil afora, voltou à minha cabeça. Também veio um distante dia de meados de 1980, quando, dando os primeiros passos na literatura – e com meu primeiro romance, A dança dos cabelos, debaixo do braço à procura de editora –, fui levado até ela, aqui em Belo Horizonte, por Afonso Borges. “Quem sabe dá certo, e a Rose topa lançar seu livro?”, disse-me o amigo, que começava com o vitorioso Projeto Sempre um Papo.

No meio da tarde, algumas horas antes da palestra, que seria realizada no Palácio das Artes, Afonso e eu seguimos a seu encontro no Othon Palace Hotel, na Avenida Afonso Pena, onde estava hospedada. Com os originais datilografados numa velha máquina Remington, e sem conseguir conter a ansiedade, fomos apresentados. Na mesma hora, sem maiores delongas, usando aqueles óculos pesados (depois vim saber que sua miopia era de 42 graus), Rose Muraro começou a ler o livro. Levava as páginas aos olhos, e lia.

 Uns 15 minutos depois, de total expectativa para mim, ela colocou os manuscritos em cima da mesa, pegou nas minhas mãos, olhou dentro dos meus olhos, e perguntou quantos anos eu tinha. “Faço 26 em outubro”, respondi. “Você é muito novo, como conseguiu escrever um livro com esse?”

 Poucos meses depois, aquele primeiro romance, que tinha sido recusado por sete editoras (atualmente está na décima tiragem, na Record), foi publicado pela Espaço e Tempo, no Rio, dirigida por ela. Marcelo Carneiro da Rocha, hoje dono da premiada Cerveja Colorado, de Ribeirão Preto, tinha fundado a editora. Desde então somos amigos. Como também, mesmo nos vendo esporadicamente, fui amigo de Rose.

Em setembro do ano passado, por sugestão dos meus editores, fui ao Rio entrevistá-la para uma matéria publicada aqui no Estado de Minas. Com a saúde frágil, praticamente cega, poucos dias antes ela havia escrito uma carta aberta que comoveu o Brasil, falando da sua precária situação financeira. “...Meus familiares estão fazendo o que podem, me dando assistência e ajuda. Entretanto, meus custos com remédios, acompanhantes e outras despesas excedem muito a minha receita”, dizia, com humildade.

Na sala do seu modesto apartamento no Bairro Peixoto, numa rua tranquila, próxima a Copacabana, se deu nosso encontro. Conversamos muito: falamos da vida, dos velhos tempos, da realidade brasileira, e da luta pela sobrevivência, que não estava fácil para ninguém. Depois tomamos um delicioso suco de graviola, feito pela sua secretária. Em um dado momento, ela pediu que eu chegasse mais perto da sua poltrona. Tinha nos ombros aquele tradicional chale espanhol, que era sua marca registrada.

 Voltou a pegar nas minhas mãos (como daquela vez, no Othon). Olhou de novo nos meus olhos, deu um sorriso, e disse com carinho: “Seus cabelos estão ficando brancos. Quando o conheci, apresentado pelo Afonso, você era um menino...”. Umas duas horas depois nos despedimos. Foi a última vez que a vi.

>> carloslopes.mg@diariosassociados.com.br

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