Povo de Luzia desvendado
Descoberta de esqueletos sepultados em matozinhos há 11 mil anos, quando viveu a mulher considerada a mais antiga do país, joga luz sobre pré-história mineira
Pedro Ferreira
Estado de Minas: 31/07/2014
Esqueletos tiveram rituais sofisticados de sepultamento |
Desde 2001, cerca de 40 pesquisadores de diversas áreas trabalham no local, coordenados pelo antropólogo paulista André Strauss, do Instituto Max Planck, da Alemanha. Com esse achado, já são 38 esqueletos em 13 anos de trabalho. O sítio fica próximo a Lagoa Santa, berço da espeleologia brasileira, explorada pelo cientista dinamarquês Peter Lund no século 19 e outros estudiosos do século passado. Na região, está a gruta Lapa Vermelha, onde Luzia foi encontrada há 39 anos. O rosto dela foi reconstituído em 1998 e está exposto no Museu Nacional, no Rio de Janeiro (RJ).
Do sítio Lapa do Santo saiu o terceiro esqueleto mais antigo do Brasil e um dos mais antigos da América, segundo o antropólogo. A diferença agora é a tecnologia avançada. “Nunca houve uma escavação com tecnologia e detalhamento como na Lapa do Santo. É a mais tecnológica do Brasil, com computadores e sistema integrado de gerenciamento de escavação”, afirma Strauss. O interesse arqueológico surgiu em 2001. “Um sítio arqueológico virgem, intacto. A maioria da região já foi explorada por equipes anteriores”, conta o pesquisador.
O trabalho é importante para estudar rituais funerários da época do povo de Luzia, que vai de 12 mil a 8 mil anos atrás “Os rituais na Lapa do Santo eram muito sofisticados. Não eram elaborados através de acompanhamentos, como potes de ouro, mas através da manipulação do corpo do falecido”, disse o pesquisador. Há um caso de uma criança que teve a calota craniana removida e usada como espécie de urna funerária, pintada de vermelho. A caixa óssea guardava cerca de 80 dentes humanos, muitos deles de crianças, de, no mínimo, cinco pessoas. “A minha ideia é que eles guardavam os dentes por um período para lembrar os seus mortos e em algum momento faziam o ritual enterrando-os. Acredito que seja relacionado ao mesmo grupo. Não interpreto como dentes de inimigos”, afirma.
Outro costume era amputar as extremidades dos ossos longos dos mortos. “Ninguém sabe e nunca saberá o motivo. A gente está tentando contar a história do povo de Luzia. Essa ideia de que eles eram homogêneos não é verdade. Eram grupos dinâmicos com transformações culturais ao longo do tempo. Gente que chegava de fora. Não é o homem nem o povo de Luzia. São os povos de Lagoa Santa”, avalia Strauss. Segundo ele, nos primeiros tempos da ocupação, não foram achados sepultamentos humanos. Os abrigos, que são as cavernas, passaram a ser usados para enterrar os mortos pelo menos 1,5 mil a 2 mil anos mais tarde.
Minas há 11 mil anos Além de sepultamentos sofisticados, pesquisadores acham ossos de animais consumidos e outros objetos que indicam como era a vida pré-histórica. Fósseis são analisados no exterior
Pedro Ferreira
Antropólogo paulista André Strauss coordena equipe de pesquisadores que faz escavações na região de Matozinhos desde 2001 |
A terra retirada das escavações é peneirada por um biólogo marinho em uma área externa. Entre o material arqueológico, estão várias conchas, que comprovam que a região já esteve no fundo o mar. “Encontramos carvão e ossos dos animais que os povos antigos consumiam, como veados e porcos-do-mato. Tudo é guardado”, informou o antropólogo paulista André Strauss, coordenador dos trabalhos em Matozinhos.
O antropólogo e cirurgião dentista Rodrigo Elias Oliveira é um dos principais exumadores de sepultamentos arqueológicos do mundo e percebe até “bico de papagaio” nos esqueletos. A mandíbula da ossada encontrada há algumas semanas mostra que a mulher perdeu os dentes ainda em vida, indica o pesquisador. “Há reabsorção óssea, o que também é sugestivo de idade”, afirmou.
O pesquisador Andersen Liryo, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coletava ontem sedimentos da cavidade abdominal e região pélvica dos esqueletos para análises paleoparasitológicas, trabalho feito por dois pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde também são feitos exames de DNA.
“É como se fosse um exame de fezes nos ossos de uma pessoa que viveu há milhares de anos. Não encontramos fezes preservadas. Elas se desfazem, mas parte dos ovos deles acabam sendo preservados”, disse Andersen. “É possível saber o tipo de alimentos e até com que animais mantinham contatos. Alguns parasitas têm, em seu ciclo de evolução, que passar obrigatoriamente por outros animais, não só pelo humano e pela terra”, afirma o pesquisador. Um dos resultados anteriores detectou presença de um ovo de ascaris lumbricoides, mas há suspeita de contaminação da área de pesquisa, que já foi usada como curral no passado.
Esqueletos do casal de idosos descobertos no sítio foram enterrados juntos |
O crânio da mulher idosa foi retirado ontem também estava fragmentado e será refeito por Rodrigo. Sobre ele estava o joelho do homem, e a mão dela ficava sobre o joelho dele. Como era costume da época colocar blocos de pedra sobre os corpos, segundo os pesquisadores, o crânio feminino foi pressionado e quebrou. “Talvez eles usassem as pedras como uma espécie de lápide ou para evidenciar onde estavam sepultados”, acredita André.
PROFUNDIDADE Os dois esqueletos foram encontrados a mais de um metro de profundidade. Os pesquisadores ficam atentos onde pisam para não causar desmoronamento das bordas das escavações. Quanto mais profunda a descoberta, mais antiga é a história. “É como se a gente fatiasse um bolo para estudar as suas camadas de terra. Estudamos a datação dos carvões e a profundidade do sepultamento. Tudo é importante para saber a idade dos esqueletos”, afirma Rodrigo Oliveira.
Os pesquisadores usam pincéis para retirar a terra do entorno dos esqueletos. A delicadeza é a mesma de um pintor retocando sua tela, e aos poucos vai revelando um passado de milhares de anos. Essa etapa da escavação levou 14 semanas. Foram descobertos 12 esqueletos em um espaço de 12 metros quadrados. André acredita que existam sepultamentos mais profundos. Sua expectativa é chegar a esqueletos pleistocênicos, acima de 12 mil anos, ou seja, antepassados de “Luzia”. Em uma pedra no chão do abrigo, próximo ao local da escavação, foram achadas várias gravuras semelhantes ao que chamam de “taradinho”, um desenho encontrado na Lapa do Santo, em 2009, e que ganhou esse nome pelo falo avantajado.
Descoberta de conchas comprova que a região era oceano há milhões de anos |
Caverna é um tesouro arqueológico
Desde 2001, pelo menos 100 pessoas, entre pesquisadores e leigos, visitaram a Lapa do Santo, que fica em uma área de preservação ambiental (APA) dentro de uma propriedade particular. O acesso é controlado pelo dono da fazenda e é preciso da permissão para entrar. Ele prefere manter segredo do tesouro arqueológico em suas terras para garantir o sossego. No grupo de visitantes, existem estudiosos do mundo inteiro. De vez em quando, André Strauss leva moradores da região e faz palestras no local para informá-los sobre o que vem sendo achado e a importância dessas descobertas para a história da humanidade.
A entrada da caverna lembra uma catedral foi esculpida pelo tempo. Um ambiente sagrado para a ciência em rochas formadas há 600 milhões de anos. O nome Lapa do Santo vem de um dos espeleotemas, que são formações rochosas que pendem do teto da caverna e que tem o aspecto demoníaco, o “tinhoso”, como preferem dizer. “Demos o nome Lapa do Santo ao sítio para neutralizar a influência maligna do tinhoso”, brinca Strauss.
Agora, depois de 14 semanas de escavação, os pesquisadores arrumam as malas e se preparam para voltar para casa no próximo sábado. Antes, devolvem a terra para o buraco da escavação. Fica tudo preservado para a próxima etapa do trabalho, que só deve ocorrer em 2016.
LINHA DO TEMPO
Descobertas arqueológicas começaram em minas na primeira metade do século 19
1801
Nasce em Copenhague, na Dinamarca, Peter W. Lund, que viveu 46 anos na região de Lagoa Santa e é considerado o pai da paleontologia, arqueologia e espeleologia brasileiras
1832
Lund faz as primeiras descobertas de fósseis em cavernas e abrigos de Lagoa Santa
1845
O cientista envia ao rei da Dinamarca a coleção de fósseis encontrados na região de Lagoa Santa
1880
Lund morre em Lagoa Santa
Década de 1950
Pesquisadores da Academia Mineira de Ciências e do Museu Nacional do Rio de Janeiro retomam as escavações na região
1974
Missão franco-brasileira, chefiada por Annette Laming Emperaire (1917-1977), faz escavações até 1976 em Lagoa Santa
1975
Annette Laming encontra na Lapa Vermelha IV o crânio de Luzia, o fóssil humano mais antigo com datação no Brasil
1998
Antropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo, estuda e data em 11,4 mil anos o crânio de Luzia
2010
Em maio, governos de Minas e Dinamarca fecham acordo para cessão, em comodato, de 300 fósseis para exposição permanente em Lagoa Santa
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