Ganhadora do Prêmio Nobel, a escritora canadense Alice Munro deleita os leitores com a força e a simplicidade dos contos de A vista de Castle Rock
André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 05/07/2014
A canadense Alice Munro sempre se expressou por meio dos contos, com singeleza e profundidade |
Não parece estranho. O Prêmio Nobel de Literatura é, como se sabe, um belíssimo divisor de águas. Até agora, não conheci nenhum livro destes mestres laureados que fosse ruim ou médio. Todos eles foram, para mim, no mínimo, extraordinários. E não foi diferente diante da descoberta de Alice Munro, uma simpática canadense de 83 anos que levou o Nobel em 2013, a 13ª mulher a conquistar o cobiçado prêmio. É dela o livro A vista de Castle Rock, publicado pela Editora Globo. A última mulher premiada havia sido Herta Müller, em 2009.
Durante vários anos, Alice dedicou-se a investigar a história de um lado de sua família escocesa, os Laidlaw. Foram inúmeras páginas de documentos consultados, além de cartas e outros registros escritos. A busca lhe rendeu uma boa quantidade de informações: o longo caminho que fizeram seus familiares até chegarem ao Canadá em um navio cheio de imigrantes e, finalmente, o estabelecimento na região rural de Ontário, onde Alice Munro cresceu. Mas apesar deste viés, destes indicativos pouco ficcionais e de escrever em uma prosa em alguns momentos mais próxima ao relato, o livro da Alice apresenta belos e longos contos.
Não se trata, portanto, de um livro de memórias nem de uma autobiografia. A autora preferiu a liberdade para completar as histórias com aquilo que sentiu falta. Ela sentiu-se livre para mudar um ou outro fato, para mudar o próprio passado, como só um escritor pode fazer.
O livro segue uma linha cronológica e é dividido em duas partes. Na primeira, reúnem-se os contos sobre os antepassados mais remotos, aqueles que ainda viveram em Ettrick Valley, os que viajaram em 1818 rumo ao sonho da nova vida no continente americano. Na segunda parte, estão os contos mais próximos ao presente, que são explicitamente feitos a partir das experiências da autora. A vista de Castle Rock foi lançado originalmente em 2006 e é o 12º livro da autora.
Alice conquistou certa autonomia, que também pode ser coragem, para criar amplos espaços mágicos. Ela não perde tempo reinventado a roda, não aponta novos rumos. Ela simplesmente escreve. Belamente escreve, como canta, como se recitasse um longo poema.
Entra neste turbilhão afetivo a força avassaladora de reminiscências, esse tempo dentro do tempo, a força paradoxal das fraquezas, a incerteza das contingências, o inexato que existe em todos os nossos cálculos, certos e errados, e as belezas da condição, da alma humana. O bom de tudo isso é que existe, para todos, a alegria de inventar e reinventar. Alice Munro é uma artista que tece, pinta e borda diante de um céu propício. Pardais e pintassilgos, as rosas trivias, o lugar-comum pode ser mais perturbador do que imaginamos.
Histórias brotam de situações. Das aventuras, das glórias de familiares distantes; de montanhas que constantemente atraem nuvens; do cheiro que a terra exibe, orgulhosa, quando chove; das travessuras do silêncio; de estradas lamacentas, intransitáveis de abandono e lirismo; de coisas sem proveito, como abetos, estuários, cataratas.
Os contos de Alice Munro desdobram-se obedecendo a vontade de um vento imperceptível, tudo acontece regido por uma calma, dentro de uma – perigosa – atmosfera de um quarto de criança. Alice escreve como quem inventa uma canção de ninar. Até que, para nosso deleite, surge, subitamente, um ranger de máquinas que desce do desconhecido, que sobe para o alto de algo precioso e atemporal.
Mansidão
Esta bela artista escreve, posiciona-se estrategicamente recuada, para não ser vista de imediato. Ela escreve dentro de inexistências. Mas quando ela aparece, pula um tigre, como se fosse um incêndio. Alice planta, sorrateira, a dúvida. O leitor, num primeiro momento fica angustiado com estes contos feitos de uma aparente mansidão, pois, como já disse, nada acontece. Mas, do nada, surge uma revoada de pássaros. Ler é ver.
Alice Munro, mal comparando, escreve com aquele nosso jeito mineiro, mineiramente, matreira como só ela. Ela nos pega pela mão e nos conduz, como quem não quer nada, como quem nada quer, até o de repente. Não tem nada de boba essa distinta senhora canadense. Ainda que fale de fatos concretos, das aventuras e glórias de antepassados, Alice encontra brechas para transitar, lúcida, diante, dentro, acima e abaixo do abstrato. Não parece simples.
Alice Munro viaja, longamente, num carrossel divertido. Prêmios são importantes, mas, como já alertou Clarice Lispector, “mais vale um cachorro vivo”. Prêmios são ótimos, mas muito melhor é a simplicidade e a força do humano das histórias de Alice Munro, mais importante são os sonhos que, naqueles de repentes, desnorteiam.
Alice Munro é dona de uma alma nova, ou antiga, tanto faz. Alice é, através de sua literatura, ao mesmo tempo, arco e flecha, dedo e gatilho. Ela reordena todo um processo de sim e não, ela sugere, ou busca, equilíbrio e sensatez. Através de suas palavras, através de sua arte, do verbo em ponto de bala. Eis uma espécie de chave. Alice Munro percebeu que é nos meandros, é justamente no fugaz que residem, que nascem as melhores sementes.
Alice Munro já deixou para todos, com seus livros, uma parte grande, absurda, de vida e ensinamento. O mundo é muito estranho, existem línguas e linguagens, famílias e linhagens, gestos que ficaram no passado, aguardando, na sombra. Alice trabalha diante desse caldeirão de descobertas.
Assim, através da literatura, através das palavras, pelas mãos de Alice Munro, entre o medo e a esperança, do alto de Castle Rock, do cume de nossas maiores montanhas, conseguimos vislumbrar o início de uma coisa chamada sonho.
Fugitiva foi seu primeiro livro lançado no Brasil, em 2006, sendo também relançado pela Editora Globo. Nas oito histórias que integram o livro, as protagonistas, sempre mulheres, caminham entre problemas do dia a dia e tragédias pessoais. O cenário é sempre o mesmo: as paisagens desoladas do Canadá, o que destaca ainda mais o aspecto moral e psicológico das narrativas
Alice Munro nasceu em 1931, em Wingham, Canadá. Estreou na literatura em 1968. A partir daí, escreveu seus livros enquanto criava as três filhas e ajudava o marido, dono de uma livraria. Foi casada duas vezes e vive hoje em um chalé do século 19.
A VISTA DE CASTLE ROCK
. De Alice Munro
. Editora Globo, 352 páginas, R$ 44,90
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