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Viagem vertical
Estado de Minas: 03/08/201
Estado de Minas: 03/08/201
“A descida seduz/
como seduziu a subida./ Nunca a derrota é só derrota, pois/ o mundo que
ela abre é sempre uma parada/ antes/ insuspeitada”
Carlos William Carlos, A descida
Mais uma vez, insisto. Existe a possibilidade de passarmos a vida sem saber nossos porquês. É possível sobreviver com referências externas, em função do desejo e da demanda do outro, numa servidão voluntária, ignorando essa alienação radical.
Num relato romanceado dessa experiência humana nada incomum, Enrique Vila-Matas, catalão de Barcelona (1948), jornalista com livros de contos e romances publicados em vários países, nos apresenta Mayol. Personagem do livro A viagem vertical (2001, Cosacnaify), ganhador do prêmio Rómulo Gallegos (2001) de melhor romance de língua espanhola.
Alguns livros nos levam a pensar como pudemos viver sem conhecê-los mais cedo. Dá vontade de decorá-los, de nunca deixá-los cair no esquecimento. Um romance comovente sobre Frederico Mayol, que, um dia, depois de suas bodas de ouro, é mandado embora da vida da esposa.
Júlia alega que não se conhece. Passou toda a vida servindo ao esposo; precisava agora, na reta final, saber pelo menos do que gostava ou não. Precisava descobrir quem é realmente essa pessoa, ela própria, que se desconhece.
Abalado, Frederico achou que talvez ela estivesse ficando louca ou brincando, depois viu a seriedade das palavras e um sorriso de nenhuma graça. Levou dias para processar a informação. Como foi difícil deixar sua cadeira de toda a vida vazia.
Dos três filhos do casal, nenhum pôde ajudá-lo. O caçula, artista medíocre e arrogante, apontava a falta de cultura e inferioridade do pai, atingindo Frederico em sua ferida mais doída. Tinha interrompido seus estudos aos 13 anos e jamais pudera retomá-los, já que, no pós-guerra, tornou-se arrimo de família. Ofendido, Frederico Mayol elege o filho alvo de todo o seu ódio.
Ele parte para uma viagem vertical e concorda em se afundar nela até o fim, o desaparecimento. Viaja para a cidade do Porto, Lisboa, e dali para a Ilha da Madeira, onde encontrou seu biógrafo.
Octogenário, é surpreendido pela falta de sentido de tudo aquilo que acreditava, e decide sumir desta vida o mais cedo possível. Buscava seu centro de gravidade, seu eixo. Um homem que resolve renascer diante da proximidade da morte, reinventar uma vida quando nada mais parece valer a pena. Buscar seu porto metafísico.
Na experiência analítica é assim. Buscamos nosso porto metafísico, como um ancoramento, uma referência situada no interior, que nos permite a estabilidade de saber mais um pouco sobre o desejo, sobre um ignorado nunca desvelado absolutamente, porque o inconsciente não se traduz todo. Permanece insabido. Parte do desejo pode-se saber, porém, nem mesmo é possível dizer se em grande ou pequena proporção.
E cada psicanálise é isto: uma viagem vertical em busca de um continente interior insuspeitado, que se revela a cada passo da escuta daquilo que dizemos muitas vezes sem suspeitar do que de fato falamos. Uma verdade oculta buscando se revelar por meio de ansiedade, angústia e sintomas insuportáveis, que foram se instalando no encontro com a dureza de um real imutável.
Sim, a cada vontade, a cada desejo o mundo nos contraria desmentindo nossa pretensa importância. A cada dia, hora, minuto somos obrigados a nos reconhecer um minúsculo grão de areia no universo. Essa desimportância fere mortalmente o narcisismo e, no entanto, admiti-la nos faz maiores e melhores.
Somos pó frente ao universo magnífico. No entanto, somos mais diante da consciência parcial da subjetividade, que nos permite fazer a viagem vertical e encontrar acordo com um desejo vital que abre a janela de algum sentido a ser construído durante nossa passagem pela vida.
Carlos William Carlos, A descida
Mais uma vez, insisto. Existe a possibilidade de passarmos a vida sem saber nossos porquês. É possível sobreviver com referências externas, em função do desejo e da demanda do outro, numa servidão voluntária, ignorando essa alienação radical.
Num relato romanceado dessa experiência humana nada incomum, Enrique Vila-Matas, catalão de Barcelona (1948), jornalista com livros de contos e romances publicados em vários países, nos apresenta Mayol. Personagem do livro A viagem vertical (2001, Cosacnaify), ganhador do prêmio Rómulo Gallegos (2001) de melhor romance de língua espanhola.
Alguns livros nos levam a pensar como pudemos viver sem conhecê-los mais cedo. Dá vontade de decorá-los, de nunca deixá-los cair no esquecimento. Um romance comovente sobre Frederico Mayol, que, um dia, depois de suas bodas de ouro, é mandado embora da vida da esposa.
Júlia alega que não se conhece. Passou toda a vida servindo ao esposo; precisava agora, na reta final, saber pelo menos do que gostava ou não. Precisava descobrir quem é realmente essa pessoa, ela própria, que se desconhece.
Abalado, Frederico achou que talvez ela estivesse ficando louca ou brincando, depois viu a seriedade das palavras e um sorriso de nenhuma graça. Levou dias para processar a informação. Como foi difícil deixar sua cadeira de toda a vida vazia.
Dos três filhos do casal, nenhum pôde ajudá-lo. O caçula, artista medíocre e arrogante, apontava a falta de cultura e inferioridade do pai, atingindo Frederico em sua ferida mais doída. Tinha interrompido seus estudos aos 13 anos e jamais pudera retomá-los, já que, no pós-guerra, tornou-se arrimo de família. Ofendido, Frederico Mayol elege o filho alvo de todo o seu ódio.
Ele parte para uma viagem vertical e concorda em se afundar nela até o fim, o desaparecimento. Viaja para a cidade do Porto, Lisboa, e dali para a Ilha da Madeira, onde encontrou seu biógrafo.
Octogenário, é surpreendido pela falta de sentido de tudo aquilo que acreditava, e decide sumir desta vida o mais cedo possível. Buscava seu centro de gravidade, seu eixo. Um homem que resolve renascer diante da proximidade da morte, reinventar uma vida quando nada mais parece valer a pena. Buscar seu porto metafísico.
Na experiência analítica é assim. Buscamos nosso porto metafísico, como um ancoramento, uma referência situada no interior, que nos permite a estabilidade de saber mais um pouco sobre o desejo, sobre um ignorado nunca desvelado absolutamente, porque o inconsciente não se traduz todo. Permanece insabido. Parte do desejo pode-se saber, porém, nem mesmo é possível dizer se em grande ou pequena proporção.
E cada psicanálise é isto: uma viagem vertical em busca de um continente interior insuspeitado, que se revela a cada passo da escuta daquilo que dizemos muitas vezes sem suspeitar do que de fato falamos. Uma verdade oculta buscando se revelar por meio de ansiedade, angústia e sintomas insuportáveis, que foram se instalando no encontro com a dureza de um real imutável.
Sim, a cada vontade, a cada desejo o mundo nos contraria desmentindo nossa pretensa importância. A cada dia, hora, minuto somos obrigados a nos reconhecer um minúsculo grão de areia no universo. Essa desimportância fere mortalmente o narcisismo e, no entanto, admiti-la nos faz maiores e melhores.
Somos pó frente ao universo magnífico. No entanto, somos mais diante da consciência parcial da subjetividade, que nos permite fazer a viagem vertical e encontrar acordo com um desejo vital que abre a janela de algum sentido a ser construído durante nossa passagem pela vida.
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