domingo, 31 de agosto de 2014

Vivendo e aprendendo

Apoio familiar e pedagógico contribui para que pessoas com síndrome de Down ganhem cada vez mais qualidade de vida


Junia Oliveira
Estado de Minas: 31/08/2014



A arquiteta Alessandra Conradt com a filha, Clara.
A arquiteta Alessandra Conradt com a filha, Clara. "É só dar oportunidade"

Clarinha acabou de entrar no ensino infantil. Lucas já percorreu uma parte maior dessa estrada. Isabella não deixa as atividades físicas de lado. Outra Isabela está a um passo do altar com Rafael, sua alma gêmea. Aline faz bonito na universidade. Ir à escola, fazer academia, namorar, casar-se. Tarefas simples e rotineiras, mas que para esses guerreiros e tantos outros com síndrome de down ganham outro sentido – o da conquista. Se há alguns anos pessoas com essa alteração genética eram até escondidas por muitas famílias, hoje são orgulho. Nas duas últimas décadas, eles deixaram de ser segregados para ser incluídos, ganhar qualidade de vida e se aventurar em qualquer tarefa. Uma nova postura dos pais é apontada como fator principal dessa mudança. Mas, apesar dos avanços, ainda há barreiras a serem vencidas para que todos os estigmas e preconceitos fiquem no passado.

Estima-se que, no Brasil, a cada 750 bebês um nasce com síndrome de Down (SD). Mas nem o Ministério da Saúde nem as secretarias de estado e municipal de Saúde têm estatísticas sobre quantas pessoas há com a doença. O assunto ganhou repercussão internacional há 10 dias, quando o cientista britânico Richard Dawkins usou sua conta no Twitter para afirmar que uma mulher grávida, ao descobrir que tem um feto com a síndrome “deveria abortar e tentar novamente. Seria imoral trazê-lo ao mundo, se você tem a escolha”, escreveu. Muitos especialistas e pessoas que convivem com quem tem sídrome de Down discordam. Para eles, pensamentos como esses fizeram, por muitos anos, que crianças, jovens e adultos fossem segregados. Agora, eles afirmam, a realidade é outra.

A psicóloga e doutora em educação Regina Célia Passos Ribeiro de Campos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembra que, até bem pouco tempo, as crianças com deficiência eram trancadas em casa, não iam à escola e não eram mostradas à sociedade. “A história de exclusão é antiga, mas hoje o avanço nas áreas das ciências humanas demonstra que, com o apoio profissional, afetivo e pedagógico, essas crianças são capazes de aprender, se desenvolver e inserir-se no mercado de trabalho”, ressalta. “Além disso, o avanço na jurisprudência abriu a perspectiva de garantia dos direitos. Já não é um ‘favor’, é um direito.’”

Há muitos exemplos disso. Aline Hélio Figueiredo Terrinha, de 27 anos, aluna do 4º período de direito, é uma das poucas universitárias do país com síndrome de Down. Com uma das melhores notas da turma, não vê a hora de se formar e prestar concurso para a defensoria pública. Já Isabella Zolini, de 27, nunca perde o alto-astral: única com síndrome de Down da academia que frequenta, é uma das mais assíduas das aulas de aerodance. Os namorados Isabela Pedrosa, de 29, e Rafael Fonseca Soares, de 31, não veem a hora de se casar. E a menina Clara, de 2 anos e 2 meses, aprendeu o sentido de liberdade quando começou a andar sozinha para onde quiser. Para eles, oportunidades dadas são desafios aceitos e cumpridos.

Pais fazem a diferença Para especialistas, atitude positiva é fundamental para que pessoas com síndrome de down melhorem desempenho escolar, desenvolvam relações e entrem no mercado de trabalho




Uma mudança de atitude das famílias foi a principal responsável por um novo olhar sobre pessoas com síndrome de Down (SD). Professor associado do Departamento de Pediatria da UFMG e coordenador do serviço de genética do Hospital das Clínicas, Marcos José Burle de Aguiar acredita que familiares começaram a deixar de lado a postura negativa, defensiva, de vergonha e medo para assumir uma atitude acolhedora. Nela, os aspectos positivos são comemorados e o orgulho dos filhos passa a ter vez. “Esse orgulho das famílias e a confiança delas nos pacientes fez com que houvesse uma revolução. Quando você não acredita numa pessoa, ela não corresponde às suas expectativas. É preciso confiar que ela vai adiante para a realidade mudar”, ressalta.

Para o médico, que também é assessor do Ministério da Saúde para a Política de Doenças Raras, a proliferação do número de associações em defesa de pessoas com síndrome de Down expuseram os meninos e a capacidade deles de vencer, em vez de expor suas debilidades. Eles passaram a ser vistos como pessoas com potencial. “Essa é uma lição para a sociedade e, especialmente, para quem que tem dificuldades ou doenças genéticas. As famílias pegaram esses aspectos positivos e, assim, começaram a impor a esses meninos desafios, os quais fizeram com que enfrentassem, progressivamente, situações melhores.”

Os avanços registrados nos últimos tempos estão nos detalhes mais íntimos. As famílias de Isabela Pedrosa, de 29 anos, e Rafael Fonseca Soares, de 31, decidem nos próximos dias como será o casamento dos dois e com quem vão morar. A mãe de Isabela, a nutricionista do Ministério da Saúde Ana Célia Pedrosa, de 53, sempre ouviu que era um absurdo deixar a filha engatilhar um namoro. Por essas e outras questões, adiou ao máximo a vida sexual do casal. “A gente observa que eles começam a ficar angustiados e até deprimidos. As preocupações são muitas, mas é preciso mudar de atitude”, diz.

A universitária Aline Hélio Figueiredo Terrinha, de 27, não pensa em namoro por enquanto, pois quer focar nos estudos. “Não tenho tempo para isso. Embora fique preocupada, porque a idade vai passando, entendo que para alcançar um objetivo tenho que abrir mão de outros”, diz. Trabalhando e estudando, ela só vê benefícios. No mercado de trabalho, aliás, a produtividade é comprovada. Estudo da McKinsey & Company, consultoria internacional de empresas e governos, mostra que a inclusão de pessoas com síndrome de down no mercado de trabalho traz benefícios mútuos.

Para quem tem a síndrome, o ganho é na qualidade de vida, aprendizado técnico, autonomia, colaboração respeito, liberdade e aceleração do desenvolvimento. Já as empresas lidam melhor com administração de conflitos, desenvolvimento de sentimento de empatia, maior tolerância e paciência e desenvolvimento de estabilidade emocional em ambiente sob pressão. Tudo isso motivado pelo fato de pessoas com SD serem comunicativas, empáticas, afetuosas, terem a memória recente restrita e o comportamento espontâneo.

De acordo com a psicóloga e doutora em educação Regina Célia Passos Ribeiro de Campos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), essa evolução ocorreu, basicamente, por causa de um outro olhar da sociedade sobre os portadores da síndrome. Mundo afora, a mudança começou a partir da 2ª Guerra, quando houve preocupação maior com direitos humanos. “Os movimentos sociais em defesa dos direitos humanos e do direito das pessoas com deficiência na segunda metade do século 20 consolidaram uma série de garantias para essa população. O Brasil também acompanha essa mudança de mentalidade, mas a situação ainda é mais lenta por aqui”, diz.

Sensibilidade Coordenadora psicopedagógica do Jardim de Infância Algodão Doce, Tereza Amaral conta que, na educação, um dos princípios é levar para os professores a formação e o senso de sensibilidade e igualdade. A escola, no Bairro São Lucas, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, se tornou referência por receber vários alunos com down. “Temos que trabalhar habilidades que vão favorecer a adaptação dentro das características dessas crianças”, afirma. Com experiência de mais de 10 anos em consultório, dos quais três dedicados exclusivamente a deficientes, Tereza chama a atenção para a inclusão dos downs. “O aprendizado é um pouco mais lento e as atividades precisam de adaptação, além de repetição e uma ordem a cada vez. Com o tempo, acostumam o cérebro a multitarefas”.

O médico Marcos José Burle de Aguiar ressalta que hoje é sabido que o paciente com down tem potencialidade muito maior do que  se imaginava. “Podemos dizer que eles vão mais adiante com certeza, porque não conseguimos ainda explorar todo potencial que têm. As perspectivas são boas e eles ainda têm muito a caminhar a conquistar. E o farão, não tenho dúvida.”



Lucas (de óculos) abraça amigo em jogo de futebol: educação recebida é a mesma do irmão (Fotos: Beto Magalhães/em/d.a press )
Lucas (de óculos) abraça amigo em jogo de futebol: educação recebida é a mesma do irmão


Matricular filhos ainda é desafio

Muitos avanços, mas ainda muitos desafios. Matricular o filho na escola é uma das primeiras barreiras enfrentadas. Se na teoria as vagas são garantidas, na prática é diferente. Segundo pais, há escolas que, como não podem dizer não, usam táticas para desestimular a matrícula. A Secretaria de Estado de Educação informou que alunos com síndrome de Down (SD) têm espaço garantido nas escolas, na perspectiva da educação inclusiva. Não há limite de vagas. Os estudantes podem ainda ser atendidos em escolas exclusivas. Na rede estadual de ensino, há 22.196 alunos com algum tipo de deficiência intelectual matriculados. Não há dados específicos para a SD. A Secretaria Municipal de Educação também foi procurada, mas não respondeu a demanda sobre o ensino infantil e fundamental.

A arquiteta Alessandra Conradt, de 44 anos, mãe da pequena Clara, de 2 anos e 2 meses, sabe bem o que é isso. A menina não foi aceita por uma escola infantil próxima à sua casa, no Bairro Sion, na Região Centro-Sul, mas, há cinco meses, ela conseguiu matriculá-la no maternal do Jardim de Infância Algodão Doce, no Bairro São Lucas. “Percebemos quando não somos bem-vindos. Embora sejam obrigadas a receber, as escolas usam de certos artifícios para te convencer de que aquele não é o lugar ideal”, afirma.

A fisioterapeuta Simone Cavalcanti de Albuquerque, de 47, também passou por muitos episódios de falta de respeito com o filho Lucas, de 9, aluno do 1º ano do ensino fundamental. Depois de uma semestre na instituição, descobriu que, em vez de aprender, Lucas estava sendo levado para o parquinho ou biblioteca. “Estavam cerceando o direito dele de aprender”, reclama. No meio do ano, ela e o marido estiveram em mais de 10 escolas, até a criança ser acolhida também pelo Algodão Doce.

Alessandra, Simone e outras 600 mães são responsáveis pelo grupo Minas Down, que surgiu ano passado da vontade de pais, amigos e profissionais ligados a pessoas com SD em estreitar o contato entre as famílias mineiras e disseminar novos conceitos. A professora Luzia Zoline, de 61, diretora da Família Down, instituição criada há mais de 20 anos para assistência a pais e filhos, reforça que ainda há escolas barrando vagas, problema que a acompanhou por anos. “Tratam as mães por ansiosas e barraqueiras, mas não é isso. A gente luta pelo direito deles”, diz Luzia, que é membro do Conselho da Criança e do Adolescente de BH. A nova luta, ao lado do marido Rogério Zolini, é conseguir terreno e recursos para construir o espaço da associação, que vai oferecer terapias também aos familiares.

 Histórias especiais

Publicação: 31/08/2014 04:00

 (Fotos: Beto Magalhães/em/d.a press )


Alessandra Conradt, 44, arquiteta
Mãe de Clara, 2 anos e 2 meses


“Só soube que a Clarinha tinha down no dia seguinte ao nascimento dela. Durante muito tempo, enxergava nela apenas a síndrome. Ninguém está preparado para isso. Mas, ao mesmo tempo que cresce a relação com o filho, a síndrome vai diminuindo. Hoje, eu lembro apenas às vezes que ela tem down, que se tornou uma característica da Clara: ela é loira, olhos azuis, tem down. Outras vezes isso vem à tona por questões sociais, por exemplo, quando precisei procurar uma escola. Quando a Clara nasceu veio o estereótipo de 20 anos atrás: ela será uma pessoa inútil, não vai andar nem fazer nada. Depois, vemos que é só dar oportunidade. Entre os desafios, está incluir a criança em todas as atividades escolares e proporcionar oportunidade de aprendizado.”


 (Fotos: Beto Magalhães/em/d.a press )


Simone Cavalcanti de Albuquerque, 47, fisioterapeuta
Mãe de Lucas, 9 anos


“Dentro de casa a educação é a mesma para meus dois filhos, o Lucas e o Pedro, de 13. Fica de castigo se faz algo errado e ganha méritos se vai bem. Do Lucas tudo é conquistado, tudo é trabalhado para que aconteça, por isso é necessário atenção para não haver desequilíbrio entre os dois. Sei que o Lucas conseguirá vencer, mas no tempo dele. Não tenho ansiedade. Não quero que ele veja as coisas e fique frustrado. Darei todas as condições para ele entrar numa universidade, mas se ele quiser. Pessoas com a síndrome têm uma capacidade absurda de serem felizes. O mais importante são as pessoas evoluírem daquela mentalidade de que down é alguém que fica no canto babando. A sociedade tem que saber o que é a criança com down hoje. Eles são puros, ingênuos, verdadeiros. E servem de exemplo.”


 (Fotos: Beto Magalhães/em/d.a press )


Isabella Zolini, 27 anos, estudante

Batom, salto alto e roupas escolhidas a dedo. Na academia Studio A2, no Bairro Luxemburgo, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, ela é a única aluna com síndrome de down. Depois de dança flamenca e natação, hoje se dedica à musculação e a aerodance. Na aula, a leveza do corpo e a presteza dos movimentos impressionam. Lê, escreve, tem a maior intimidade com o notebook, o telefone celular e as redes sociais. Estuda de manhã e, há três anos, trabalha à tarde na Assembleia Legislativa. Adora uma balada e, quando quer sair, ganha a companhia dos pais para enfrentar a fila das boates e mostrar o gingado nas pistas de dança. Graciosa, falante e desinibida, sua maior preocupação no momento é preparar a festa de aniversário, mês que vem. “Adoro ouvir música”, diz. Uma de suas habilidades é fazer cachecol no tear, fato que ela conta com muito orgulho.


 (Fotos: Beto Magalhães/em/d.a press )


Isabela Pedrosa, de 29, e Rafael Fonseca, de 31

Eles se lembram do momento. Estavam num ônibus, voltando de Itabira, na Região Central do estado, onde ela havia feito uma apresentação de dança do ventre, quando os olhares se cruzaram. Nove anos depois, os dois não veem a hora de subir ao altar e levar adiante o amor consagrado. “Está tudo iluminado. É o sonho do Rafael casar, dormir junto, viajar junto. É assim mesmo que acontece. Temos que conseguir e lutar para isso”, diz Isabella. Os dois fazem um curso de extensão na PUC Minas: ela de massagem terapêutica e ele de inserção no mercado de trabalho. Rafael está à procura de emprego e já distribuiu currículos, enquanto a namorada ajuda a cuidar de crianças numa escola inclusiva, a Despertar. Ele é músico e atleta profissional. Goleiro, viajou por 14 dias para a China para defender a Seleção Brasileira nas Olimpíadas Especiais, em 2007, conquistando a medalha de bronze Filhos estão nos planos do casal.


 (gladyston rodrigues/em/d.a press - 29/11/12)


Aline Hélio Figueiredo Terrinha, 27, universitária

Ela entrou na faculdade de direito em 2012. As médias 7 e 8 a credenciam como aluna com as melhores notas da sala. “Não está tão difícil quanto eu imaginava que seria”, diz. Estudante de escola pública durante toda a vida, resolveu prestar o vestibular, anos depois de se formar no ensino médio, sem fazer cursinho e sem apoio nem mesmo de familiares. Aprovada, não se esquece da primeira vez que entrou na sala. “Fiquei muito emocionada. Não houve qualquer rejeição. Os colegas e os professores me trataram muito bem”. A ex-caixa de supermercado agora trabalha durante o dia como auxiliar administrativo em Ibirité, na Grande BH, e estuda à noite na Faculdade Anhanguera, no Centro da capital. O objetivo de Aline é claro: fazer concurso para a defensoria pública. “Essa é uma das carreiras que faz a função social do direito, de ajudar pessoas de poder aquisitivo baixo.”

Desvendando a síndrome




» A síndrome de Down (SD), ou trissomia do 21, não é uma doença. É uma alteração genética universal, presente em todas as etnias e classes sociais, caracterizada basicamente por três manifestações mais comuns: comprometimento intelectual, hipotonia (tônus muscular mais baixo) e fenótipo característico. pessoas com SD tem uma cópia extra total ou parcial do cromossomo 21. O material genético adicional altera o curso do desenvolvimento e faz com que surjam as características associadas à síndrome.

» Descrita em 1866 pelo inglês John Langdon Down, só em 1959 se descobriu que a SD seria uma alteração genética.

» No Brasil, a cada 750 bebês, um nasce com a SD. Uma das maiores preocupações é em relação à saúde, pois há um risco aumentado para certas doenças, como cardiopatias congênitas, problemas respiratórios e auditivos, mal de alzheimer, leucemia infantil e hipotireoidismo.

» Toda pessoa com SD é um indivíduo único, assim como qualquer outro ser humano. Pode ter muitas das características ou apenas algumas delas.

» No passado, a expectativa de vida para as pessoas com SD era de apenas 25 anos. Atualmente, a longevidade gira em torno dos 60 anos.

» O desenvolvimento cognitivo é mais lento, mas seu efeito geralmente é de leve a moderado. O potencial das pessoas com SD é como o de qualquer outro indivíduo: é necessário que estejam em um ambiente acolhedor, que lhes faça transpor as barreiras e mostrar, então, suas habilidades e qualidades.

» Os programas de educação com qualidade, um ambiente estimulante em casa, bons cuidados de saúde e o apoio positivo da família, dos amigos e da comunidade permitem que as pessoas com síndrome de down desenvolvam todo o seu potencial para levar uma vida plena e feliz. 

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