Zero Hora 12/10/2014
Tenho um amigo que só lembra coisas maravilhosas da sua infância, desde
um balanço que havia no pátio da sua casa até os aromas inesquecíveis do
café que a avó preparava todas as tardes. Suas memórias parecem um
comercial de panetone. Teve uma vez em que nós, da turma, nos irritamos
com ele.
Vem cá, você não lembra a vez em que seu pai te colocou de castigo
sem razão, da vez em que você foi o único a não ser convidado para o
aniversário de um colega de aula, da vez em que todos os seus primos
combinaram de fingir que não ouviam nem enxergavam você, de como você
morria de vergonha das espinhas, de quando escutou uma tia chamando você
de filhote de cruz-credo?
Ele respondeu: não.
Ele não lembra essas coisas porque elas não aconteceram, mas
certamente ele vivenciou algumas outras humilhações, teve que engolir
raivas, sentiu-se desprotegido. Só que ele fez uma edição caprichada do
filme da sua vida: deletou os maus momentos e salvou a parte boa, e é
somente sobre ela que comenta com os amigos.
Mesmo a infância mais idílica tem seu lado soturno. O filho do meio
que se sentia negligenciado pelos pais. A menina que era obrigada a se
vestir de princesinha quando queria mesmo era jogar bola com os garotos.
A vez em que o violão tão esperado não veio: Papai Noel trouxe uma
gaita de boca. Sem falar nas questões barra pesada: fome, abusos,
perdas. Todo adulto é o resultado de uma criança que, mesmo tendo tido
avós rechonchudos, bolos, pracinhas, piqueniques, vira-latas, árvores de
Natal e castelos de areia, teve que ser muito homem antes da hora. Ou
muito mulher.
Aí crescemos e há duas opções: ou saboreia-se a vida, ou suporta-se a
vida. Essa sutil diferença de verbo e de postura é consequência do
quanto esse adulto conseguiu entrar num acordo com a própria infância.
Se até hoje ele não perdoou o colega que o difamou na hora do recreio,
se continua acreditando que teve culpa pelo atropelamento do cachorro e
se não se conforma de nunca ter recebido um abraço do pai, vai continuar
arrastando correntes vida afora, preso a um passado que já foi, já era,
e que não vai mudar.
Meu amigo negociou do jeito dele: jura que nada de ruim o afetou na
infância, nada, zero, nem o beijo negado pela namoradinha do bairro, nem
a vez que quebrou o braço na rua e ficou na porta de casa esperando que
alguém chegasse, nem de quando sua mãe esqueceu de buscá-lo na escola.
Ele conseguiu essa proeza: superar o fato de sua mãe ter esquecido
de buscá-lo na escola no dia em que completava oito anos. Temos vontade
de esganá-lo por ser uma criatura tão elevada. E ele, rindo, nos chama
de crianções, nós que ainda não aprendemos, como ele, a deixar os dodóis
do passado para trás.
Nenhum comentário:
Postar um comentário