Paloma Oliveto
Estado de Minas: 26/03/2013
Brasília – Em meados do século 16, o cirurgião francês Ambroise Paré estava habituado a fazer amputações. Trabalhando para o Exército, costumava extirpar braços e pernas feridos irreparavelmente no campo de batalha. O que muitos soldados começaram a relatar, porém, foi uma novidade. “É uma coisa maravilhosa e estranha. Eu dificilmente acreditaria se não tivesse visto com meus próprios olhos e ouvido dos pacientes que, muitos meses depois de ter suas pernas cortadas, eles ainda sentiam uma grande dor no membro amputado”, escreveu. Mais tarde, outros cirurgiões escutariam as mesmas queixas: a de que um membro “fantasma” surgia no lugar do arrancado. Não era uma simples ilusão de ótica. A parte do corpo podia não estar mais lá, mas as dores eram incrivelmente reais.
Ainda hoje, esse fenômeno intriga a medicina. Por muito tempo acreditou-se que as causas eram psicológicas: quanto maior a rejeição à cirurgia, maior a dor sentida. Contudo, atualmente, já se sabe que o problema é fisiológico. Com um conhecimento maior do cérebro e graças a tecnologias de imagem avançadas, que permitem visualizar a atividade dos neurônios dos pacientes, cientistas começam a desvendar os mecanismos por trás da dor fantasma.
Até agora, prevalece o modelo da má adaptação da plasticidade cerebral. Segundo essa ideia, diante da perda de um órgão, o cérebro tenta se reorganizar, mas essa reestruturação não dá certo. A região que representa o membro amputado começa a responder a estímulos de áreas próximas, como a face. Qualquer sensação tátil no rosto, por exemplo, como um toque ou uma coceira, provocaria a ativação dos neurônios relacionados à parte do corpo extirpada. Essa confusão no cérebro resultaria na dor em um membro que não existe mais.
“As pessoas nascem com um mapa de seu corpo ‘impresso’ no cérebro. Depois da amputação, a representação da parte do corpo ainda existe, como um tipo de memória sensorial. Mas o mapa fica distorcido e, segundo algumas pesquisas, é essa reorganização que está relacionada à dor”, explica Gary Duncan, pesquisador do Departamento de Fisiologia da Universidade de Montreal, que está recrutando pacientes para um estudo sobre o fenômeno. “O que se tem procurado entender é como a plasticidade fomenta essa sensação, porque só assim poderemos oferecer efetivamente um alívio para esses pacientes. O estudo da dor fantasma também é muito interessante porque fornece diversas pistas a respeito do funcionamento do cérebro”, diz Duncan.
O pesquisador lembra que até 90% dos amputados relatam algum tipo de dor fantasma, mas nem sempre a sensação é apenas dolorosa. “Alguns dizem, por exemplo, que conseguem visualizar o membro amputado, conseguem mexê-lo e têm a impressão de até mesmo poder tocá-lo. Existe, na literatura médica, relatos de homens que tiveram o pênis extirpado e, ainda assim, podiam sentir uma ereção.” De acordo com ele, a sensação de presença da parte retirada pode acontecer mesmo quanto a órgãos internos, como o apêndice.
Outra hipótese Para uma equipe de pesquisadores da Universidade de Oxford, o modelo da má adaptação da plasticidade cerebral está equivocado. Recentemente, eles publicaram um estudo na revista Nature Communications no qual defendem que a região do cérebro relacionada ao membro extirpado não responde aos estímulos de outras partes do corpo. Ela simplesmente continua completamente preservada. Assim, de acordo com esses pesquisadores, quando um amputado recebe um estímulo tátil no rosto, por exemplo, a área cerebral do membro retirado não vai ser acionada, desencadeando a dor. Eles admitem que a amputação provoca mudanças funcionais no cérebro e mesmo alterações no volume de massa cinzenta – algo que já foi constatado na autópsia de pessoas amputadas –, mas não acreditam que o motivo do sofrimento fantasma seja a reorganização malfeita dos neurônios.
Em vez disso, os cientistas de Oxford defendem que a dor é causada por uma desregulação no sistema sensorimotor dos amputados. Como o mapa cerebral mantém a representação perfeita do órgão extirpado, o cérebro “pensa” que a parte do corpo removida ainda está lá. Com isso, manda ordens para que ela se movimente ou experimente sensações, como coceira e ardência. Mas, como esse membro só existe no mapa mental, a ordem não pode ser obedecida. A interação entre estímulo e resposta é desregulada e, em consquência, o paciente sente dor.
“No nosso estudo, constatamos que, quanto mais preservada a representação do membro, maior a dor. Essa interrupção entre o real e o imaginário é seguida pela sensação dolorosa”, afirma Tamar Makin, pesquisadora do Centro de Ressonância Magnética Funcional da Universidade de Oxford e principal autora do estudo. Ela admite, contudo, que ainda não é possível dizer por que a interrupção entre o sistema sensorial e o motor causa dor.
Na pesquisa, participaram 41 pessoas: 18 que tiveram um braço amputado, 11 que já nasceram sem um dos membros e 22 voluntários com ambos os braços. Durante a ressonância magnética, exame que mostra a atividade do cérebro, os cientistas pediam para que as pessoas mexessem ou imaginassem que estavam movimentando a mão. Mesmo aqueles que perderam o membro há quase 20 anos exibiram uma ativação de neurônios igual aos dos participantes que tinham os dois braços.
“Isso mostra que a representação funcional da mão amputada foi preservada. É interessante notar que os pacientes que relatam maior intensidade e frequência da dor fantasma foram aqueles com maior ativação. Então, quanto mais forte é a representação do membro no mapa cerebral, mais dor ele vai sentir”, conta Tamar. O exame revelou que os participantes do estudo que nasceram sem o braço também têm uma imagem dessa parte do corpo no cérebro, mas nunca sentiram a dor fantasma. A cientista acredita que isso ocorre por eles não terem uma memória sensorial desse membro.
Unhas no gelo “Sinceramente, não sei se poderemos ajudar os pacientes a partir dessas descobertas, mas acredito que, se nossos resultados forem confirmados em futuras pesquisas, haverá uma mudança de paradigma importante para conduzir tratamentos adequados”, diz Tamar Makin. Uma das participantes do estudo, que espera se beneficiar dos resultados, é Kirsty Mason, de 22 anos. A jovem, que perdeu o braço direito há quatro anos, depois de desmaiar e cair nos trilhos de um trem, contou à equipe de pesquisadores que sente arrepios e beliscões no membro fantasma, além de uma dor constante, da qual consegue se esquecer quando está ocupada. O grande problema, disse Mason, é uma forte sensação de queimação, que beira o insuportável. Nesse caso, ela coloca o braço dentro do freezer, o que produz alívio. Segundo a jovem, embora não possa ver a mão, ela sente perfeitamente as unhas arranharem o gelo.
O cirurgião Thomas Weiss, professor da Universidade de Jena, na Alemanha, explica que as terapias para dor fantasma são, até agora, ineficazes e com muitos efeitos colaterais. “Geralmente, os médicos receitam remédios fortes para dor, como opioides. Ocorre que esses medicamentos não só têm baixíssima eficácia como podem causar dependência”, diz. Defensor da teoria do mal funcionamento da plasticidade cerebral, Weiss inventou uma prótese para pessoas com a mão amputada que transmite para o cérebro as informações sensoriais e, de volta, recebe o impulso motor.
De acordo com ele, os pacientes que usaram o equipamento experimental relataram uma melhora significativa nas dores, embora não se saiba se a prótese funcionaria para outros membros amputados. Para Weiss, independentemente de o cérebro se reorganizar de forma errada ou de a representação do membro ser a causa das dores, a ideia de substituir a parte do corpo extirpada por um equipamento com sensores pode corrigir a modificação das conexões cerebrais e permitir que o sistema sensorimotor funcione corretamente. “Em ambas as situações, ou em outras que a neurociência descobrir, a falta do membro afeta o cérebro. Por isso, me parece razoável que uma prótese que mimetize as funções da parte amputada consiga ‘enganar’ a mente, acabando com um desconforto que pode durar anos ou persistir por toda a vida”, diz.
Como uma parte do corpo
A ideia de que uma prótese possa enganar o cérebro, como imaginado pelo cirurgião Thomas Weiss, professor da Universidade de Jena, não só é possível como foi constatada em uma pesquisa conduzida pela Universidade Sapienza, em parceria com a Fundação Santa Lucia, da Itália. Pesquisadores descobriram que até mesmo uma cadeira de rodas é percebida como parte do corpo de quem precisa usá-la constantemente. O estudo foi publicado no jornal Plos ONE.
Os 55 participantes da pesquisa sofreram danos na medula espinhal e todos eram cadeirantes. De acordo com os autores do artigo, desde que começaram a depender do suporte, independentemente de quanto tempo tinha se passado desde o acidente, os voluntários percebiam a cadeira de rodas como parte integrante do corpo, um processo conhecido na psicologia como incorporação.
Embora, evidentemente, eles saibam que o apoio é um objeto, a sensação física é a mesma que uma pessoa sem lesão na medula tem em relação às pernas. “A consciência corporal dessa ferramenta emerge não como uma extensão do corpo simplesmente, mas como um substituto e uma parte do ser funcional”, disse, em um comunicado, a neuropsicóloga especializada em reabilitação Mariela Pazzaglia, principal autora do artigo.
Estudos anteriores haviam indicado que pessoas com próteses que restauram os movimentos perdidos podem percebê-las como integrante de sua identidade física, mas não se sabia se essa sensação era causada pelo uso habitual ou por alguma adaptação do próprio cérebro. Para Mariela, a segunda hipótese é a mais provável, já que, aparentemente, o órgão se adapta a novos sinais sensoriais e incorpora as próteses no mapa de representações corporais. De acordo com o artigo, o resultado poderá ter implicações para as terapias de reabilitação de pessoas que perderam membros ou movimentos. (PO)
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