quinta-feira, 21 de março de 2013

Marina Colasanti - Um tal de Francisco‏


Estado de Minas: 21/03/2013 

Pela segunda vez, Francisco está em Roma. A primeira aconteceu em 1210, quando o frade de Assis, acompanhado por seus 12 primeiros discípulos, buscou com o papa Inocêncio III aprovação para a Primeira Regra dos Frades Menores. Não foi bem recebido. Era ainda um leigo, vestido pobremente, que pregava a aplicação integral do Evangelho, quase um insulto para a cúria rica e arrogante diante da qual se apresentou.

Conta o cronista inglês Mateus Paris que com “sua pobre túnica, sua cabeleira em desordem e suas imensas e negras sobrancelhas” foi confundido por Inocêncio III com um guardador de porcos. “Deixe-me tranquilo com tua regra” – lhe disse – “vá primeiro reencontrar teus porcos e pregar-lhes todos os sermões que queiras”. Francisco obedeceu, foi até uma pocilga, revirou-se na lama fétida, e voltou. “Senhor, agora que fiz o que me tínheis mandado fazer, tenha por sua vez a bondade de me conceder o que solicito.” Assim, conseguiu Francisco uma nova audiência.

Modesto e obediente, o Poverello se revelou no episódio um bom político. E foi recompensado, porque, entre um e outro encontro, Inocêncio teve o famoso sonho em que viu a basílica de Latrão se inclinar como se fosse desabar, sendo sustentada por um religioso “pequeno e feio”. E talvez cheirando a esterco de porco.

Jorge Mario Bergoglio nem precisou ter um sonho para ver o colossal edifício da Igreja em péssimo estado. Não apenas por amor aos pobres escolheu o nome Francisco, mas porque sabe que lhe cabe a tarefa de botar ordem na casa e restabelecer o equilíbrio. Esse nome aparentemente simples, tão cheio de significados que pode ser considerado um motto, ecoou imediatamente no mundo como um plano de pontificado.

Em sua primeira audiência com jornalistas, papa Francisco não usou os tradicionais sapatos vermelhos. Não houve quem não reparasse, o significado da escolha era claro. Bergoglio calçou seus velhos sapatos pretos de cadarço.

 Os sapatos vermelhos da tradição representam o sangue dos mártires, e usá-los significa estar disposto ao sacrifício. Mas tudo tem sempre mais de um significado, e a tradição dos muleos – assim se chamam – remonta à Roma antiga, quando só podiam ser usados por patrícios e senadores de primeira ordem. Algo de poder ficou guardado nessa pisada de sangue confeccionada sob medida. Francisco, o de Assis, caminhou muito, pregando descalço. Só na Segunda Regra admitiu para seus frades o uso de calçados, e ainda assim, apenas em caso de necessidade. O calçado que os franciscanos adotaram era o mais pobre de todos, aquele com duas tiras sobre o pé, que não aquece no inverno e só viria a perder em simplicidade para a sandália japonesa.

Vi duas roupas que pertenceram a Francisco de Assis, uma em Assis, outra em Cortona, na Igreja de São Francisco. Eram ambas claras – ao contrário da cor parda do burel tradicional –, o mais próximo de branco que se podia alcançar naquele tempo, com aquela lã rústica ainda tão irmã da ovelha. Remendadas, cerzidas, muitas vezes consertadas. E pequenas, como se de garoto. São as roupas que ele se permitiu usar quando muito doente e tomado por dores, já perto da morte.

É provável que o papa Francisco se veja constrangido a usar um par de sapatos novos. Mas vermelhos, só trocando de nome.

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