Eduardo Tristão Girão
Estado de Minas: 05/06/2013
Foram duas sessões, cada uma com cerca de 50 pessoas, sentadas em filas, como se fosse num cinema. Em frente a elas, entretanto, nada de tela, palco ou artistas. Apenas uma mesa sobre a qual foram colocadas caixas de som ligadas a laptop contendo as 11 faixas de Deriva, novo disco do cantor e compositor Kristoff Silva. Ele apertou o play e todos ali “assistiram” ao álbum como se fosse um espetáculo, da primeira à última faixa, durante seus 50 minutos. Foi num sábado à noite há pouco mais de uma semana, no Teatro Espanca!, Centro de Belo Horizonte.
Na plateia dessa inusitada estreia (ou audição, como prefere Kristoff) estavam não apenas amigos e do artista e gente do meio musical. “Uns 30% ou 40% eram desconhecidos. Achei ótimo”, conta. Todos foram convidados antecipadamente por ele pelo Facebook, sendo que nos três dias anteriores ao evento o convite se tornou visível para qualquer usuário da rede social. O compositor deu boa noite e limitou-se a falar não mais que cinco minutos sobre o disco, deixando que cada um tirasse as próprias conclusões. Ao final, ouvintes trocando ideias e uma banquinha a vender o CD por R$15.
“Quando a gente produz, os cuidados para se chegar a um resultado são apontados para uma escuta que, atualmente, não é favorecida. Ouve-se só um pedaço da música ou no laptop ou enquanto se conversa com as pessoas. No caso de qualquer filme, por exemplo, pressupõe-se que será visto em condições ideais. Isso é o que gostaria não só para o meu disco, mas para muito do que se produz em Minas Gerais”, justifica Kristoff.
A repercussão, conta ele, está acontecendo, mas de forma mais tímida do que se tivesse optado por um lançamento tradicional, com show, assessoria de imprensa e propaganda. Ele não sabe quando poderá fazer show para mostrar como Deriva funciona no palco, mas está certo de que repetirá essa experiência de audição (aberta ao público) em breve. Primeiro em Belo Horizonte (este mês na Fundação de Educação Artística), depois em São Paulo e, talvez, Rio de Janeiro. O aluguel do espaço, afirma, foi pago com a venda de CDs naquela noite.
Não que os shows tenham se tornado secundários em sua carreira. “Percebi que é possível fazer essas audições independentemente. Não tenho o compromisso de fazer isso ao vivo. O disco é uma obra fechada”, explica. O significado de sua opção, acredita, é maior: “Foi muito bom, pois recuperou-se ali um rito talvez muito comum em outras épocas. Gente vivenciando de forma coletiva o prazer com a música popular. Nos concertos eruditos é comum permanecermos uma hora em silêncio, sorvendo o que é tocado. Na música popular, não”.
Gerações A curiosidade em torno da audição, no entanto, não ofusca a alta qualidade do trabalho, que corresponde à expectativa criada desde Em pé no porto (2007), seu relevante disco de estreia. As 11 novas canções o mantêm entre os nomes de ponta de sua geração, também conhecida como “geração Reciclo Geral”, todos em torno dos 40 anos. Poderia ser uma indigesta salada de programações eletrônicas, instrumentos reunidos em arranjos nada óbvios e letras de vários autores, mas o resultado impressiona pela coerência estética e pelo talento e cuidado com que cada palavra e nota são colocadas.
“Não é porque sou professor de teoria musical que tudo isso que estou fazendo é algo semierudito. Minhas influências são populares e, nesse disco, estrangeiras. Dirty Projectors, Grizzly Bear, Prince”, afirma Kristoff. A direção de Deriva é dele e a produção musical compartilhada com Pedro Durães. Este é também responsável pela maior parte das programações eletrônicas e integra o núcleo principal do trabalho ao lado de Rafael Martini (piano), Pedro Trigo Santana (baixos acústico e elétrico) e Antônio Loureiro (bateria e vibrafone). Todos colocando a precisão a serviço da intenção.
“Sempre foi meu desejo amalgamar sons acústicos e eletrônicos. Passei por isso ao gravar com Makely Ka e Pablo Castro o disco A outra cidade, quando o Lucas Miranda descortinou as programações eletrônicas para mim. Havia me formado em violão clássico e fui perceber que o grau de acuidade e zelo ao usá-las pode exigir até mais de mim. São sempre a parte mais demorada, e não estou falando de loop”, explica o artista.
Outro ponto que chama a atenção: em suas interpretações, Kristoff se apossa de cada uma das canções do disco, ainda que não seja autor de uma letra sequer – só compôs as músicas. “Procuro uma forma de dizer os poemas numa pulsação regular. Depois, busco curvas entoativas que sejam naturais e pareçam a com a fala, para que vira uma canção. Aí, pego o violão para construir a harmonia. Escolho a fala como parâmetro para a melodia do canto, não aspectos musicais. Além disso, são letras com cujo conteúdo não só concordo, mas preciso dizer”, esclarece.
Em nome da palavra
O
carioca Mauro Aguiar é o compositor mais frequente em Deriva, assinando
cinco canções. Completam o time de parceiros Bernardo Maranhão (com
três letras), Makely Ka e Luiz Tatit, sem contar a releitura de Acrilic
on canvas, extraída do repertório do Legião Urbana. “Se as letras vêm
primeiro é porque estamos certos do que vai ser dito e isso é que
alinhava as canções. A partir daí percebo as necessidades musicais para
saber como dar ênfase. Tensão, por exemplo, procuro em dissonância,
subdivisões rítmicas e programações eletrônicas”, conta. Música a
serviço da palavra, como sempre fez.
“Mandei e-mail para o Mauro dizendo que queria ser parceiro dele e ele me mandou 36 poemas. O Tatit tem leveza e humor inigualáveis, acuidade para aspectos humanos mínimos em tamanho e máximos em significância. Makely e Mauro o obrigam a abrir o dicionário, são enciclopédicos, sendo que o primeiro é mais anguloso e o segundo parece querer lhe dar um drible. Já o Bernardo, assim como o Tatit, são duas versões da leveza que, distraidamente, alcançam a profundidade”, elogia o compositor.
A aparência de pirâmide
sonora invertida que se tem ao final da audição, confirma ele, é
intencional. Começa com a densa (e tensa) trama de programação
eletrônica, piano, violão, baixo e bateria de Palavrório e termina com o
lindo violão da meditativa Devires, passando pelo rebuscamento de
Rabiscos e pelo flerte com o pop de O adeus. “O disco tem um fio
condutor. Uma explosão seguida por uma diluição, um pulso seguido por
uma ressonância. Começa pontuado por negativas e termina mostrando que
existe um sim. O sim perfeito pode acontecer numa canção”, observa. Não
por acaso, está dividido em lado A e B.
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