Zero Hora - 16/092013
Vês estes campos em cujo horizonte já avança a cidade que outrora foi
pequena? Vês estas colinas em cujo topo se erguem duas ou três chaminés e
onde antes só havia a voz do vento compondo sua música ancestral? Vês
aquele último trecho de mata, que em outra época foi uma grande floresta
habitada por pássaros sem nome? Pois foi aqui que aconteceu.
Aconteceu nesse tempo muito anterior de que te falo, com um homem
que não conheci. Tudo aqui era diverso, exceto por esta grande casa, que
então se erguia solitária, num mudo desafio à paisagem. Tudo era
diverso, descontando as figueiras que têm dois séculos e que já então se
elevavam sobre uma vasta extensão de sombra.
O homem se havia refugiado nesta casa tão logo finda uma ida guerra e
seus sonhos se povoavam ainda de batalhas e por vezes despertava em
meio à treva como se as vozes dos mortos o chamassem.
Foi numa dessas insônias que sentiu o perfume que vinha de nenhuma
parte e, com um castiçal, foi percorrendo cada lance da grande casa, o
salão deserto, os quartos vazios, a escadaria em que se viam as marcas
de um fogo desde sempre contido, a peça ao alto, sobranceira a tudo,
onde numa parte esquecida de sua existência havia composto seu único
poema. E então o perfume desapareceu.
Aquilo se reprisou por outras noites e outras insônias e novas
guerras e batalhas povoadas das vozes dos mortos e o homem já não
dormia, inquieto, perguntando se não era ela que então lhe voltava, mas
não ousava crer que, há tanto tão perdida em seu passado, lhe pudesse
retornar, já que não havia mais esperança habitando seu mundo e sua
alma.
– Como será ela agora? – pensava, e tornava a andar pela casa
deserta como um náufrago em fero mar, perdido o lenho, e buscava
lenimento em reinventá-la, nua e sua, no quarto da cama com dossel de
idas idades.
Teria olhos azuis, ou garços, ou mel, a senhora de todos os seus
desejos, a que agora lhe roubava as noites com seu perfume e o sono com
suas lembranças? E o homem não encontrava respostas para esse claro
enigma e a chama do castiçal se desvanecia em suas mãos com a alba.
E, uma noite, mais forte lhe veio o perfume e ele abriu a porta do
quarto da cama com dossel e lá estava ela, enovelada em sua pele alva e
em seus cabelos dourados, e um ao outro se deram, e assim os acharam,
muitos anos depois, extintos, abraçados em desejos antes interditos, em
infinitos jogos de entrega e posse, que foi quando esta lenda verdadeira
principiou.
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