CARTA CAPITAL - 02/09/2013
A recepção hostil aos cubanos é sintoma de um debate político medíocre
A recepção aos médicos cubanos em Fortaleza não deixa dúvidas: setores 
da classe média brasileira vivem um estado terminal de emburrecimento e 
canalhice. Em outros tempos, um programa ao estilo do Mais Médicos, que 
prevê a contratação de profissionais do exterior para suprir as 
deficiências no atendimento à saúde em áreas isoladas, seria debatido à 
luz da razão, Prós e contras, custos e alternativas. Não é a primeira 
vez, aliás, que o País recorre aos tais "escravos" cubanos. No fim do 
governo Fernando Henrique Cardoso, eles também foram importados. A 
época, meios de comunicarão que agora incitam a população contra os 
estrangeiros apresentaram a iniciativa com o a salvação do atendimento 
médico nacional.
Infelizmente, a polarização ideológica tem 
impedido uma discussão racional deste e de tantos outros temas. Há 
muitas críticas ao programa do governo federal e muitos médicos 
respeitáveis, entre eles o trio de colunistas de CartaCapital, têm 
restrições sérias à opção de Brasília. Na página 36, o neurologista 
Rogério T uma expõe algumas. Mesmo assim, é inconcebível a manifestação 
na segunda-feira 26 contra os cubanos. Organizado pelo Sindicato dos 
Médicos do Ceará, o ato expôs a selvageria e a prepotência de quem 
habitualmente se considera mais civilizado do que a média da população. 
Os brados de "Escravos! Escravos! Voltem para Cuba" mistura xenofobia e 
um anticomunismo exasperado e fora de propósito, além da fragilidade 
intelectual diante de uma clara manipulação política.
Nem mesmo 
após as incontáveis manifestações de repúdio ao ato houve pedido de 
desculpas, apenas cínicas justificativas. "Quando os manifestantes 
gritavam "escravo", não foi no sentido pejorativo. Foi no sentido de 
defesa, de que eles estão submetidos a trabalho escravo e estamos 
lutando para mudar aquele vínculo", afirmou José Maria Pontes, 
presidente do sindicato cearense.
Às "vítimas" a que o doutor 
Pontes se refere pensam diferente. "Não somos escravos. Seremos escravos
 da saúde, dos pacientes doentes, de quem estaremos ao lado o tempo 
todo", reagiu o médico cubano Juan Delgado, destaque da foto de abertura
 desta reportagem. "Não sei por que diziam que somos escravos, não vamos
 tirar seus postos de trabalho."
Antes de convocar os 
estrangeiros, o Mais Médicos abriu inscrições exclusivamente para os 
brasileiros dispostos a trabalhar na periferia das grandes cidades, no 
interior do País ou em áreas remotas. Mesmo assim, 701 municípios 
permanecem sem um único médico. Daí a convocação dos profissionais 
formados no exterior.
As entidades médicas tem razão, no entanto,
 quando argumentam que a estrutura da maioria dos hospitais públicos, 
sobretudo no interior, é precária, conforme CartaCapital demonstrou em 
duas recentes reportagens de capa (edições 762 e 757). Ou mesmo ao 
demonstrar preocupação com a competência técnica de profissionais 
dispensados de um exame de avaliação.
Dc concreto, a importação de médicos estrangeiros caminha para uma batalha
judicial.
 A Associação Médica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina 
impetraram uma ação de inconstituciona lidado no Supremo Tribunal 
Federal para suspender o programa. Na ação, as entidades alegam ser 
ilegal a contratação dc profissionais formados em outros países sem uma 
aprovação no Exame Nacional de Revalidação de Diplomas (Revalida). O 
Ministério Público Federal do Distrito Federal instaurou ainda um 
inquérito para verificar se as condições de trabal ho oferecidas aos 
médicos cubanos violam normas de direitos humanos.
Intermediado pela Organização Pan-Americana de Saúde, o acordo de trabalho dos cubanos prevê o pagamento da bolsa
Xenofobia.
 Os responsáveis psio grotesco protesto não apresentaram desculpas, 
apenas cínicas justificativas de 10 mil reais ao governo de Cuba, que 
costuma repassar aos profissionais uma parcela dos rendimentos, 
normalmente 40% ou 50% do valor. O mesmo modelo foi aplicado em mais de 
50 países, entre eles Equador, Venezuela, Haiti e Portugal.
O 
advogado-geral da Uniào, Luís Inácio Adams, por sua vez, prometeu 
processar os Conselhos Regionais de Medicina que negarem registro 
provisório aos profissionais, como determina a lei.
Nas primeiras
 batalhas, o governo levou vantagem. Na quarta-feira 28, o ministro 
Marco Aurélio Mello, do STF, rejeitou o pedido de liminar apresentado 
pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) para suspender o programa. Pouco 
antes, a Justiça Federal em Minas Gerais havia recusado uma contestação 
apresentada pelo CRM local. O magistrado entendeu haver uma tentativa de
 "reserva de mercado"
Apesar da simpatia da mídia em 1999, a 
importação de médicos cubanos pelo governo FHC acabou barrada na 
Justiça, após diversas ações movidas por entidades médicas. Os contratos
 foram cancelados e os médicos, reenviados à ilha caribenha.
"Nessaépoca,
 havia 60 cubanos atuando por aqui. Eles receberam treinamento, mas nâo 
puderam ficar em razão daoposiçãodo CRM", afirma Camilo Capiberibe, 
governador do Amapá, estado com a segunda menor concentração de médicos 
do País (0,76 por mil habita ntes). " É preciso enfrentar a realidade. 
Faltam médicos. A ampliação de vagas nas universidades vai demorar a 
trazer resultados. Por que não atrair médicos estrangeiros como tantos 
países fazem?"
Ex-ministro do governo Lula e atual diretor do 
Isags, braço de saúde da Unasul, José Gomes Temporão aponta um "evidente
 preconceito" em relação aos médicos estrangeiros. "Claro que a proposta
 correta seria submeter todos esses profissionais ao Revalida. Mas, se o
 exame fosse exigido, os aprovados poderiam exercer a medicina em 
qualquer local e especialidade, tanto no setor público quanto no 
privado. Isso vai contra a estratégia do governo de restringir os locais
 de exercício apenas àqueles municípios definidos, na atenção básica e 
no setor público."
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