quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Falem mal, mas não de mim

Correio Braziliense - 16/10/2013

Biógrafos e biografados. De um lado, a liberdade de expressão e a memória do país. Do outro, questões ligadas a direitos autorais e a privacidade. A discussão se inflamou nos últimos dias, a partir da criação do bloco Procure Saber, formado por artistas do porte de Roberto Carlos, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Chico Buarque, que passou a pleitear, publicamente, a manutenção da autorização prévia do biografado para que as publicações cheguem às lojas. O debate chegou à Feira do Livro de Frankfurt, na semana passada. Por lá, escritores como Laurentino Gomes e Fernando Morais demonstraram repúdio ao grupo, presidido pela empresária Paula Lavigne. O imbróglio gerou a seguinte questão: estaria havendo uma tentativa de censura prévia?

Direitos autorais

Carlos Didier e João Máximo, autores de biografia sobre Noel Rosa, tiveram sua obra embargada. Lançada em 1990, viram a reedição vetada sete anos depois pela viúva do artista, Dona Lindaura, que, na época, não autorizou a publicação de imagens e letras de músicas. "A verdade é que ela não gostou, por que a história que ela estava contando para os netos era outra", observa Didier, sem dar detalhes. Para completar, em 2003, entraram em cena duas sobrinhas de Noel, que processaram os autores por questões ligadas a direitos autorais.

Resultado: o livro nunca ganhou outra versão. E, segundo Didier, nem há previsão. "O Brasil é um país avesso ao conhecimento. A proibição das biografias é a ponta de um iceberg", acredita. Para ele, os artistas que aderiram ao Procure Saber estão acostumados a verem seus nomes sempre incensados, além de "controlarem as informações". Por isso, têm medo de abordagens mais profundas sobre suas vidas. "Daqui pra frente, os biógrafos vão botar a viola no saco", prevê.

Cauby Peixoto, Claudette Soares e Dolores Duran. Os três cantores tiveram as trajetórias esmiuçadas em livros de Rodrigo Faour. Para o autor, submeter o texto previamente ao artista ou a familiares se assemelha à época da ditadura militar, quando letras de músicas dependiam de aprovação. Sobre o repasse de parte dos lucros para os artistas, que o Procure Saber também propõe, Faour é enfático: "As pessoas não sabem quanto se vende de livro no Brasil. Se vissem, ficariam estarrecidas. É muito pouco."

Ney Matogrosso já havia até se esquecido de alguns fatos passados em sua juventude quando leu uma obra sobre ele. Mesmo assim, optou por não fazer nenhuma objeção à publicação. "Acredito que o temor das pessoas que se posicionam a favor da manutenção da lei tem a ver, por exemplo, com as loucuras que são publicadas na internet. Esse tipo de coisa é que assusta", opina o artista. "Não vejo o posicionamento do Procure Saber como algo ligado a dinheiro." Já Raimundo Fagner se mostra contrário às ações do grupo. "Acho que a liberdade de criação deve ser respeitada. Se aparecer algo calunioso, o biografado pode abrir processo", sugere.

"Não se pode transformar isso em uma guerra econômica.
O debate é acerca da liberdade democrática"
Márlon Reis, jurista

Para saber mais

Imbróglio judicial

» Biografias de Noel Rosa, Roberto Carlos e Guimarães Rosa, entre outras, foram impedidas de circular nos últimos anos. Os impedimentos recorrem aos artigos 20 e 21 do Código Civil, que preveem a proibição do uso de imagem ou a indenização no uso indevido (art. 20) e a inviolabilidade da vida privada (art.21).
» Em 2011, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), movida pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros, contra o artigo 20 do Código Civil, foi protocolada no STF, que ainda não se manifestou sobre a matéria.


» Presidida pela empresária Paula Lavigne, a entidade Procure Saber se manifestou contra a mudança no Código Civil e pediu a manutenção dos referidos artigos. O bloco, integrado por Caetano Veloso, Chico Buarque e Milton Nascimento, entre outros, defende a autorização prévia dos biografados e a participação desses nos lucros obtidos pelas respectivas obras.

Não há censura prévia no Brasil" 

Correio Braziliense - 16/10/2013

O debate sobre as biografias não autorizadas chegou à esfera jurídica. Caberá ao Supremo Tribunal Federal (STF) a palavra final. Para o juiz de direito Márlon Reis, um dos articuladores da Lei da Ficha Limpa, o litígio caminha para um único destino. "A Constituição é muito clara. Não há censura prévia no Brasil. Essa informação é absoluta, sem exceção", disse. A posição do juiz se assemelha àquela defendida pelo presidente do STF, Joaquim Barbosa, que se colocou a favor da publicação das biografias, independente de autorização. "Ninguém é obrigado a submeter seu trabalho a qualquer crivo", completou Reis.

Em relação aos artigos do Código Civil , comumente utilizados para impedir a circulação de biografias, o jurista se mostrou inflexível: "Os artigos 20 e 21 foram redigidos de forma equivocada. Compete ao Poder Judiciário declarar a sua evidente inconstitucionalidade". Segundo ele, também incorreram em erro casos anteriores, como do cantor Roberto Carlos e de Noel Rosa, cujas biografias não constam nas prateleiras. "Houve uma leitura engessada da Constituição, sobre a qual prevaleceu o Código Civil, uma lei ordinária", comentou. Reis espera que o STF possa resguardar os casos que estão por vir e "reparar o dano causado".


Quando questionado sobre os argumentos do Procure Saber, o jurista não enxergou qualquer cabimento legal nos pleitos pretendidos. "Não há embasamento jurídico para os dois principais argumentos: a autorização prévia e a participação do biografado nos eventuais lucros. Isso é ilegítimo e juridicamente imoral". A melhor forma de se contrapor às pesquisas e biografias, segundo Reis, é por meio da busca de uma eventual reparação: "Há possibilidade de indenização, mas a verificação deverá ser sempre posterior. Jamais prévia."

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