Valor Econômico - 04/10/2013
Luciano Máximo e Viana de Oliveira
Especialistas debatem o futuro do SUS, uma promessa da Constituição que confronta a adversidade há 25 anos.
Em 25 anos de história, completados em outubro deste ano, o Sistema
Único de Saúde (SUS) está longe de observar os princípios que orientaram
sua criação e seu funcionamento, conforme foi estabelecido na
Constituição de 1988: ser universal, integral e igual.
Especialistas em saúde pública reconhecem limitações nas áreas de
atendimento, gestão, financiamento e participação social, mas consideram
o SUS o melhor modelo de saúde pública para o país. Para que um SUS
melhor seja realidade, porém, recomendam mudanças, a começar pelas que
aumentem a capacidade de investimento do sistema.
Para fazer o balanço do primeiro quarto de século de existência do SUS, o
Valor realizou um debate entre o ex-ministro da Saúde José Gomes
Temporão, o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, superintendente do
Hospital Sírio-Libanês, o diretor-presidente do Instituto Performa,
Bernard Couttolenc, e o professor Mário César Scheffer, da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo.
"O maior problema é o subfinanciamento crônico. O SUS foi pilhado desde a
origem, faz milagre com o pouco que tem. Países com sistemas
universais, nos quais o SUS se inspirou, reservam, em média, 7% do PIB
para a saúde pública. No Brasil, são 3,6%. Estamos numa encruzilhada",
questiona Scheffer.
Especialista em economia da saúde, Couttolenc afirma que a oferta de
serviços a 100% dos brasileiros é inviável. Uma saída para o SUS, diz
ele, seria aprimorar a integração com a iniciativa privada, que investe
mais em saúde que o setor público. "A promessa do SUS me parece
inviável, política e economicamente. Ninguém conseguiu fazer isso. Nem
Inglaterra nem Canadá, ninguém promete tudo de graça para todos. Isso
passa pela discussão do papel relativo do setor privado no SUS. Não há
recursos suficientes para dar conta de 200 milhões de pessoas."
Temporão é enfático ao discordar: "No Canadá ou na Inglaterra, todos os
cidadãos são obrigados a passar pelo clínico geral do serviço público,
do peão ao presidente. Temos que discutir qual modelo queremos. O que
aconteceu para não termos o SUS que queremos? Desde o início, os setores
do operariado, na retórica, apoiavam o SUS, mas na prática promoviam o
plano de saúde privado por categoria no acordo coletivo de trabalho.
Isso fragiliza a força política e estratégica do SUS até hoje."
Vecina lembrou que saúde foi uma das principais demandas projetadas nas
manifestações de junho. Portanto, o SUS não teria outra saída, a não ser
buscar a eficiência. "A sociedade brasileira nunca deu bola para
eficiência, mas hoje ou a gente é mais eficiente ou não tem saída. Tem
um conjunto de arranjos possíveis que temos que discutir", acrescentou o
médico, referindo-se a parcerias com o setor privado e opções para
elevar o investimento público no SUS.
A seguir, os principais trechos do debate.
Valor: Como se compara o atual SUS com a saúde pública antes de 1988? É
possível enxergar uma evolução nesses 25 anos e fazer um balanço daquilo
que não deu certo?
José Gomes Temporão: O SUS é um sucesso estrondoso. Sem ele, estaríamos
numa situação de barbárie social, em que cada um teria a saúde que
pudesse pagar no mercado. Os demais países olham o Brasil como a
experiência mais interessante das últimas décadas. O SUS surgiu no
contexto da luta política contra a ditadura. Havia um forte olhar para
mudanças estruturais, que modificassem o padrão de saúde. A melhora nos
indicadores de saúde são impressionantes: expectativa de vida ao nascer,
mortalidade infantil, controle de doenças infectocontagiosas, redução
da mortalidade de doenças crônicas. Na atenção à saúde individual, os
resultados são heterogêneos. Houve coisas importantes, como o Programa
Nacional de Imunização - é, disparado, o melhor do mundo. O Brasil é o
país onde mais transplantes de órgãos são feitos, depois dos Estados
Unidos. O SUS está fragilizado por questões macroestruturais, que foram
se acumulando ao longo dessa trajetória. Chamaria a atenção para quatro
ameaças: disputa político-ideológica, financiamento, a questão do modelo
assistencial e gestão.
Gonzalo Vecina Neto: É importante olhar o passado. Parece que o SUS é
uma ruptura, mas não é. O sistema de saúde está inserido no processo de
urbanização e industrialização do Brasil. Na década de 1970, só as
capitais tinham Secretaria Municipal de Saúde. No início dos anos 1980,
90% da população urbana tinham acesso à Previdência Social. Em 1986, na
8ª Conferência Nacional de Saúde, surge a ideia do SUS, mas ele já
estava em gestação. Não tem ruptura na construção do que a sociedade
brasileira tem hoje; nem no setor privado, que nasce nos anos 1950 em
torno do Iapi [Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários],
que não conseguia dar atenção adequada aos operários.
Temporão: Antes do SUS, 90% da população urbana, que constituía 40% da
população, tinham garantia de algum tipo de atenção. E os outros? Eram
objeto de caridade e morriam à míngua. Era natural morrer sem
assistência. Isso mudou radicalmente.
Bernard Couttolenc: O SUS representa um ponto de inflexão, embora seja
fruto de um processo evolutivo, político. Não se pode comparar
diretamente o SUS com a situação anterior. Em algumas áreas, houve uma
revolução. Em outras, houve avanços. Há algumas em que se avançou muito
pouco.
Valor: Mas foi um "sucesso estrondoso"?
Couttolenc: Não diria isso. Um aspecto que o SUS revolucionou foi a
lógica do sistema de saúde. Antes, não havia um sistema, mas uma coleção
de subsistemas fragmentados. Hoje, temos um desenho claro e
estruturado. Há um planejamento unificado em saúde pública. Mas um
sistema que se quis único e universal não conseguiu ser isso. A parte
privada ficou de fora e cresceu. Outro ponto de inflexão é a alocação de
recursos. Antes do SUS, 90% dos recursos iam para atenção curativa,
principalmente hospitalar. A partir dos anos 1990, priorizou-se a
atenção primária. Isso se reflete nos indicadores de saúde. Na atenção
secundária e terciária, as comparações são mais complexas. O Brasil era
muito atrasado em indicadores de saúde, mas recuperou bastante terreno. É
resultado do SUS? Não só. Junto com o SUS, houve uma série de mudanças
importantes que afetam os indicadores de saúde. A redução das
desigualdades sócioeconômicas, por exemplo. O nível de renda da
população de baixa renda melhorou bastante. A melhoria no acesso à água e
ao saneamento também seriam importantes.
Mário César Scheffer: O SUS é um projeto de inclusão. Se analisarmos a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) antes do SUS e hoje,
mais que dobrou o acesso da população a serviços de saúde. Antes do SUS,
as pessoas tinham acesso de acordo com sua capacidade de pagamento ou
inserção no mercado de trabalho. Aos 25 anos, o SUS é um projeto viável.
Só não podemos deixá-lo morrer por causas externas. É um projeto
incompleto. Não foram dadas condições para efetivar o SUS
constitucional, mas o SUS adquiriu uma base legal sólida e uma
experiência técnica operacional enorme. O problema do SUS é a
sustentabilidade política e financeira. Ele não se tornou uma política
de Estado. O SUS tem problemas de gestão. Temos dificuldades de acesso
e, quando o paciente acessa o serviço, não tem seu problema resolvido.
Mas seu maior problema é o subfinanciamento crônico.
Valor: Nesses 25 anos, o SUS sofreu alguns "golpes", com prejuízo para seu financiamento.
Scheffer: Foi pilhado desde a origem. A Constituição diz que o SUS
deveria ter 30% do orçamento da Seguridade Social. Se isso estivesse
vigorando hoje, seriam R$ 195 bilhões. O orçamento federal do SUS está
em R$ 84 bilhões. Perdemos a base de cálculo das contribuições sociais,
da folha de pagamento, depois tivemos a extinção da CPMF, a criação da
DRU [Desvinculação das Receitas da União]. O SUS faz milagre com o pouco
que tem. Os países com sistemas universais, nos quais o SUS se
inspirou, reservam, em média, 7% do PIB para a saúde pública; o Brasil
investe 3,6%. Estamos numa encruzilhada. Não vislumbramos o SUS como
sistema universal, como diz a Constituição. Mas também não podemos
vislumbrar um sistema predominantemente privado como o chileno, o
colombiano ou o americano, que são fracassos estrondosos. O alento está
nas manifestações de rua de junho, pedindo serviços públicos de
qualidade, principalmente serviços de saúde.
Couttolenc: Um ponto central é o financiamento. O SUS, legalmente, foi
desenhado como um sistema que ofereceria tudo para todos de graça, e não
houve condições políticas e econômicas para assegurar um financiamento
compatível. Não conheço nenhum país em desenvolvimento, com o nível de
renda do Brasil, cujo sistema de saúde consiga oferecer tudo para todos
de graça.
Valor: O SUS deveria ser menos ambicioso?
Couttolenc: A promessa do SUS me parece inviável, política e
economicamente. Ninguém conseguiu fazer isso. Nem a Inglaterra nem o
Canadá, ninguém promete tudo de graça para todos. Isso passa pela
discussão do papel relativo do setor privado dentro do SUS. Não há
recursos suficientes para dar conta de 200 milhões de pessoas.
Scheffer: Temos um sistema peculiar. Constitucionalmente universal, mas
uma estrutura de gastos com predominância privada. Temos pouco mais de
8% do PIB para saúde, mas 60% desses recursos são privados. Essa é a
raiz da desigualdade e da dificuldade em efetivar a universalidade
proposta pelo SUS. Não acho que devamos abdicar desses pilares. Temos é
que conversar, inclusive em praça pública, sobre as contas da saúde.
Valor: O povo não percebe o SUS como um sucesso estrondoso. Se outros
países se inspiram no Brasil, por que a população vê outra coisa?
Temporão: Como se dá o processo de construção da consciência em saúde
coletiva na sociedade? Como a população avalia um sistema de saúde? Pelo
contato diário, concreto. Discordo da ideia de que o SUS é inviável
política e economicamente. Depende do sistema que se quer montar. Não
temos uma porta de entrada única, como no Canadá ou na Inglaterra, em
que todos os cidadãos são obrigados a passar pelo clínico geral. Temos
que discutir que modelo queremos. O que aconteceu para não termos o SUS
que queremos? Primeiro, financiamento. Segundo, desde o início, os
setores do operariado, na retórica, apoiavam o SUS, mas na prática
promoviam o plano de saúde privado por categoria no acordo coletivo de
trabalho. Isso fragiliza a força política e estratégica do SUS até hoje.
Couttolenc: Quando digo que tem um conflito entre a promessa do SUS e o
volume de recursos necessário e quando também falo de viabilidade
econômica, não estou questionando a existência do SUS. Ele precisa ser
adaptado em várias questões. Não faz sentido, por exemplo, ter o SUS e o
sistema privado completamente separados. E tem o chamado racionamento.
Qualquer país na área de saúde raciona o acesso a serviços.
Scheffer: Aí perde-se o teor de integralidade.
Couttolenc: Dá para garantir integralidade apesar disso. Em todos os
sistemas existe algum racionamento. Ou de maneira clara, com regras
explícitas, ou por omissão. Quem pode, pode. O exemplo mais truculento é
o sistema americano. Países europeus e o Canadá racionam atendimento em
função de um critério de custo e efetividade.
Temporão: A diferença desses países para o Brasil é que lá a
racionalidade vale para todos, sem exceção. Do presidente ao operário.
Couttolenc: É a vantagem dos critérios objetivos. A sociedade brasileira
ainda não discutiu isso. Temos uma promessa generosa, mas a sociedade,
digamos assim, não concorda em bancar o custo do que quer receber. O
descompasso precisa ser resolvido.
Scheffer: A relação público-privado é mal resolvida. O sistema de saúde
brasileiro nunca será puro público ou puro privado. Sempre teremos que
trabalhar com essa sobreposição de lógicas. A agenda reformista do
movimento sanitário emplacou a saúde como direito na Constituição, mas a
Constituinte foi confrontada com os interesses do setor privado. Sempre
teremos que trabalhar com essa dualidade, mas, ao longo do tempo, há
uma contradição nas dificuldades impostas ao SUS universal pelas
políticas cumulativas de privatização da saúde pública.
Valor: O gasto das famílias com saúde, ao longo desses 25 anos, aumentou
muito. O SUS universaliza vários serviços, mas, mesmo assim, as
famílias estão gastando mais.
Scheffer: Com 70% da rede hospitalar privada, o SUS depende de prestação
e financiamento privados. Com duas novidades recentes: a privatização
galopante da gestão, com a presença das OSs [organizações sociais] nos
postos de saúde e hospitais públicos, por exemplo, que contribuem para
afastar o SUS de seu projeto original, e o crescimento do mercado de
planos de saúde. Há dois projetos claros em disputa: um é o projeto do
movimento sanitário, o original, que significaria mais recursos públicos
para o SUS e regulação do setor privado; o outro é o crescimento
artificial dos planos de saúde, com planos baratos no preço e medíocres
na cobertura.
Couttolenc: Mudaram as expectativas da população. Se a população critica
o atendimento, em parte não é por que o SUS piorou as coisas. É por que
as expectativas aumentaram mais do que aquilo que o SUS conseguiu
oferecer. Aumentou a renda, aumentou a educação, as pessoas querem mais
do que só ser atendidas. Antes, ser atendido era central. Isso é um
sinal de sucesso. Outra coisa é que o setor privado não é
necessariamente melhor que o SUS. O setor privado é uma catástrofe.
Plano de saúde é uma droga. Temos que batalhar por um melhor desenho de
integração dos sistemas.
Vecina: Toda ação é derivada de um sonho. E sonhamos fora da realidade,
em outro espaço. Se a gente só sonhasse na realidade, continuaria
reproduzindo as coisa eternamente. O sonho do SUS busca construir uma
nova realidade. Qual é a solução? De onde vem o dinheiro? Não tem
solução nem de onde vem o dinheiro. Tem arranjos que foram socialmente
construídos e que precisam continuar sendo construídos. O SUS é fruto
disso..
Valor: A iniciativa privada se apoia muito na estrutura da saúde pública?
Vecina: A relação do Estado com o setor privado é promíscua. O capital
tem envolvimento importante na determinação da vida política. A
sociedade brasileira nunca deu bola para eficiência, mas hoje, com mais
comensais à mesa, ou a gente é mais eficiente, ou não tem saída. Tem um
conjunto de arranjos possíveis que temos que discutir.
Scheffer: Há um compartilhamento de serviços, um livre trânsito de
profissionais e pacientes entre um sistema e outro. Cerca de 60% dos
médicos trabalham ao mesmo tempo no público e no privado. São 50 milhões
de brasileiros com planos de saúde, mas que usam o SUS constantemente
pelas inúmeras exclusões de cobertura, mas também por aquilo que só o
SUS oferece. Precisamos refazer as contas em praça pública. A população
precisa ser convidada a participar do debate das deduções tributárias,
das isenções e dos benefícios fiscais que o setor público dá ao privado.
O fundo público sustenta em grande parte o mercado privado. Apesar de o
ressarcimento ser previsto em lei, o SUS não recebe toda vez que um
cliente de plano de saúde particular é atendido em hospital público. Há
muito recursos públicos em favor do setor privado. Estamos chegando ao
ponto de o SUS ser uma espécie de resseguro, um sistema compensatório do
setor privado.
Valor: Alguém já conseguiu mapear quanto recurso público está no privado?
Temporão: Muito. O sistema de saúde brasileiro sempre foi uma mistura de
público e privado. Nesses 25 anos, a oferta pública ambulatorial
cresceu estupidamente, mas a oferta de leitos hospitalares continua mais
da metade na mão do setor privado. O privado a serviço do universal é
possível. A questão do trabalho médico é central nessa promiscuidade. A
Constituição garante que o médico possa ter dois empregos públicos em
entes distintos da federação e pode ter uma atividade privada. Ao se
formar, o médico deveria ter de optar entre o público, em que teria de
ser bem remunerado, claro, e o privado. Os médicos não querem nem ouvir
falar nisso. Querem trabalhar 20 horas e dar muitos plantões, ter muitos
vínculos. Surgem muitos conflitos de interesses. Na gestão, defendo um
modelo público de fundação estatal regida pelo direito privado. O que é
isso? Os funcionários vão ser contratados pela CLT [Consolidação das
Leis do Trabalho] como qualquer trabalhador brasileiro.
Valor: O ponto é o Estado ter autonomia para contratar e demitir quando precisar?
Vecina: Veja o que aconteceu com a rede hospitalar do Rio de Janeiro:
onde João Figueiredo [presidente da república entre 1979 e 1985] foi se
tratar?
Temporão: No Hospital dos Servidores do Estado.
Vecina: Hoje, onde os políticos se tratam? O que aconteceu com o
Hospital dos Servidores? Também no Rio de Janeiro, o que aconteceu com o
Inca [Instituto Nacional de Câncer]? E a Fiocruz? Esses têm fundações
privadas de apoio. A fundação é o órgão de apoio contra o qual se
insurge o Ministério Público, porque é uma solução jurídica esdrúxula. É
uma fundação chamada de terceiro tipo. É privada com objetivo de
administração pública.
Valor: Isso ocorre porque a gestão pública é engessada, não?
Scheffer: Talvez o cenário seja uma competição de várias modalidades.
Não me parece adequada a epidemia de organizações sociais. A cidade de
São Paulo foi esquartejada entre 11 organizações sociais. Elas competem
por recursos humanos predatoriamente, cada uma com uma forma de
remuneração, um maneira de gerir o serviço. Abdicamos de ter parâmetros
homogêneos e padronizados na saúde sem resolver o problema.
Vecina: Mas quem dita a política é o Estado, que tem o poder regulador. O
problema é o Estado não ser capaz de ditar a política de gestão.
Couttolenc: Embora o Brasil tenha uma coleção razoável de experiências e
modelos, não construiu duas coisas: um consenso sobre o que funciona
melhor e o que não funciona, e um consenso para evoluir para um
determinado modelo. É preciso uma reforma de fundo do papel e do
funcionamento do Estado, da modalidade de gestão pública.
Temporão: O Inca é uma entidade de referência em câncer. Se um
neurocirurgião do Inca se aposenta, é preciso contratar outro. Como
funciona? O Inca manda o pedido para o Ministério da Saúde. Isso leva
seis meses. Vai para o Ministério do Planejamento e leva mais um ano e
meio. Depois, faz um concurso público, que leva mais seis meses. São
dois anos e meio sem o cirurgião. O que o Inca fazia? A fundação
contratava. O modelo em que o diretor de um instituto gasta dois anos
para substituir um profissional está morto.
Valor: Por que é difícil mudar isso? É corporativismo de trabalhadores ou o governo resiste?
Vecina: Concepção do Estado.
Couttolenc: O modelo da administração direta não funciona e temos uma
série de experiências interessantes que deveriam ser aproveitadas, mas
não se criou um consenso sobre a direção a seguir. Também não se criou
uma filosofia e mecanismos para avaliar objetivamente o que é feito.
Valor: E os conselhos de saúde, que papel exercem nesse emaranhado de polêmicas?
Vecina: Foram tomados pelas corporações. O controle social é um dos
pontos de clivagem fundamentais da construção do SUS. Mas o Conselho
Nacional de Saúde e a maioria dos conselhos municipais foram tomados
pelas corporações. Seja de profissionais, seja de representantes de
doenças...
Scheffer: O Conselho Nacional de Saúde foi totalmente cooptado pelo Ministério da Saúde.
Couttolenc: Tem gente tentando inovar, propondo modelos alternativos. Há
também um movimento forte contrário a qualquer modelo alternativo. O
meio-de-campo do que precisamos e podemos fazer é uma bagunça.
Vecina: Sobre o financiamento, existem diversos arranjos e um país deste
tamanho não tem como ter um só. O Hospital Federal de Clínicas de Porto
Alegre é uma empresa pública. A rede Sarah Kubitschek é um serviço
social autônomo. Tem as fundações de apoio. A PPP [parceria
público-privada] do Hospital do Subúrbio de Salvador está indo muito
bem. O que faz a diferença? A capacidade regulatória do Estado. O que é
gestão? A capacidade de mobilizar recursos para atingir objetivos.
Comprar coisas e contratar pessoas. Quando é o caso, demiti-las. Temos
que rever a estabilidade.
Scheffer: Mas também não se mantém um sistema de saúde com contratos precários.
Vecina: A realidade do mercado é essa. Não tem como contratar todo mundo por CLT.
Valor: O Ministério do Trabalho não fiscaliza?
Vecina: Fiscaliza, mas não tem saída. O mercado funciona assim.
Couttolenc: O que não quer dizer que esses arranjos sejam os melhores possíveis.
Scheffer: São os piores possíveis.
Vecina: É o mercado. Como ignorar que a realidade anda desse jeito?
Valor: A discussão sempre volta para o financiamento. O melhor seria
melhorar o modelo que existe ou financiar algo menos ambicioso?
Temporão: Seja qual for o modelo, só aceito se for para todos. Da
presidente até o peão. A Inglaterra gasta 8% do PIB com saúde e os EUA,
17%. Comparando os indicadores, os americanos ficam muito atrás: são 50
milhões sem cobertura. Um ponto é a relação entre gasto público e
privado. As famílias que têm plano gastam um per capita bem maior que o
do SUS, que oferece muito mais porque vai da prevenção até o tratamento
de doenças crônicas. E tem o gasto tributário, renúncias e subsídios. Em
2011, o total desse gasto foi de R$ 16 bilhões, 24% do total do gasto
federal em saúde. O gasto tributário é elemento de indução da política
fiscal, mas não tem critério. Mais da metade da renúncia beneficia
famílias de mais alta renda. O Estado tira do SUS R$ 16 bilhões e põe no
mercado.
Scheffer: Foi um movimento simultâneo: o desfinanciamento do SUS e os
aportes públicos para o setor privado de saúde. E o mercado quer mais.
Em março, as maiores seguradoras foram bater na porta da Presidência em
Brasília para pedir mais isenções.
Temporão: Querendo desenvolver produtos simplificados para a nova classe média.
Scheffer: Planos de saúde pobres para pobres. Olha onde podemos parar.
Temporão: Outro ponto do financiamento é o absurdo de dizer que a saúde é
um direito de todos e dever do Estado, mas subsidiar plano de saúde de
funcionários públicos. Isso, sem entrar nos gastos com saúde dos
senadores, assistência médica para a família inteira, sem um valor de
teto, sem critério.
Scheffer: Fora a cobertura que o SUS garante em função das exclusões dos
planos de saúde. Isso é incalculável e tem a ver com a leniência da ANS
[Agência Nacional de Saúde Suplementar]. Ela foi capturada pelo mercado
que deveria regular. É um mercado com sérios problemas de cobertura,
rede insuficiente, reajustes abusivos.
Couttolenc: Subsídios em si não são o problema. A questão é: qual é o
objetivo? Contribuem para o fortalecimento do sistema? Para preencher
lacunas do sistema público? Hoje, não tem critério. É contraproducente.
Temporão: O ideal seria que esses gastos tivessem um foco. Na alta complexidade, na atenção primária. Resolver gargalos.
Valor: Fala-se muito nessa agenda, do público versus privado, mas sem unidade. Como fazer esse debate ficar mais profícuo?
Temporão: Caímos na armadilha de opor melhor gestão e mais dinheiro.
Esforços de melhoria de gestão são uma obrigação de qualquer governo, em
qualquer época. E tem gente que diz que o dinheiro é suficiente, basta
gastar melhor. Isso não é verdade.
Scheffer: Mesmo a demanda atual de destinar 10% da receita corrente da
União para a saúde não daria R$ 190 bilhões em seis anos. Passaríamos
apenas de 3,6% para 4,5% do PIB em recursos públicos. É muito pouco.
Couttolenc: A questão do financiamento não vai avançar se ficar limitada
a mais dinheiro para o SUS. Tem que rediscutir o papel do público e do
privado, como alavancar o dinheiro do privado para contribuir no sistema
como um todo. O Brasil gasta 9% do PIB em saúde. É muito num país em
desenvolvimento. O que acontece com esse dinheiro? O que a sociedade
quer do sistema de saúde? Quanto custa isso?
Scheffer: Só não pode cair na armadilha de dizer que dinheiro não é
problema. A estrutura de gastos predominantemente privados está na raiz
da estrutura de castas na nossa saúde. Todos os sistemas universais têm
mais de 70% de gastos públicos. Aqui são 40%. Não é possível, sem mais
recursos públicos e novas fontes de recursos, chegar a um sistema de
saúde universal.
Valor: As manifestações de junho cobraram claramente melhorias nos
serviços públicos de saúde. Qual é o espaço para discutir o que a
população quer do sistema de saúde?
Scheffer: Na Olimpíada de Londres, o Sistema Nacional de Saúde britânico
fez parte da abertura. Isso mostra o orgulho que eles têm. Ninguém está
satisfeito com a saúde no Brasil: nem quem depende do SUS nem quem usa o
setor privado. A sociedade tem que entender o que está acontecendo e
decidir que sistema de saúde quer. Não vislumbramos o SUS como foi
idealizado há 25 anos, mas um sistema predominantemente privado não é
solução.
Temporão: Nos países inseridos no modelo de bem-estar social, o sistema
surge de um processo de maturação da democracia: querem um sistema igual
para todos. É parte da consciência coletiva britânica que o sistema de
saúde seja um bem público de valor inestimável. Tem um profundo sentido
de solidariedade nisso. Agora o povo está na rua pedindo saúde pública
de qualidade. Não vi nenhum cartaz dizendo que quer mais plano de saúde.
Vecina: Estou cético quanto a isso. Não existe acumulação de
conhecimento suficiente nem disposição da sociedade para caminhar nessa
direção. As pessoas não têm a percepção do público. É uma evolução que
teremos de atravessar na consolidação da democracia. O sistema inglês é
solidário, mas foi criado em 1948, depois da guerra.
Scheffer: Há um pouco mais de consciência social. As ruas reivindicam algo diferente.
Valor: A resposta imediata do governo federal no plano da saúde simboliza o quê?
Scheffer: Nada. Foi uma resposta insuficiente e precária.
Valor: Nem o Mais Médicos foi suficiente? Ele foca uma insuficiência de
recursos humanos. Talvez o sistema de saúde devesse olhar mais para a
formação de profissionais.
Couttolenc: A questão básica não é a insuficiência de médicos, mas sua alocação. O Mais Médicos é uma estratégia emergencial.
Scheffer: É uma política focalizada e, como tal, tem seus méritos.
Vecina: E a estrutura à atenção básica? Aumentamos bastante o número de
escolas médicas. Em 20 anos vamos fechar esse buraco. Mas falta médico
no país. O tempo de considerar um médico para mil habitantes era o tempo
da atenção vertical. Estamos vivendo uma carga de doenças que exigem
atenção horizontal. Não é mais uma consulta sobre pneumonia, mas tratar
hipertensão e diabetes para o resto da vida. Esse modelo consome a
percepção de um médico para cada 300 habitantes.
Scheffer: O programa Mais Médicos tem o aspecto meritório de contratar
médicos para locais onde eles faltam. É melhor que nada, mas não é uma
resposta para o que estamos discutindo. Temos três níveis de
desigualdade de distribuição de profissionais: regional, entre público e
privado - só 60% dos médicos atuam no SUS, muito pouco para um sistema
que se pretende universal. O terceiro nível é o de formação. Não temos
profissionais formados para atender às reais necessidades de saúde da
população, principalmente as necessidades da atenção primária.
Temporão: A responsabilidade do governo é: como levo médicos para
atender às necessidades básicas? A Austrália tem dificuldade de
colocação de médicos e tem uma política para isso. Mas é ingênuo
acreditar que abrir uma faculdade de medicina no interior vai fixar os
médicos ali. Precisa ter uma política diferenciada, com estímulos. Acho
que deve haver um serviço civil obrigatório para alunos de universidade
pública. Essa lei dorme no Congresso há décadas, ninguém quer mexer
nisso.
Valor: O que a política pública de saúde precisa olhar nos próximos 25 anos do SUS?
Vecina: O que queremos? Um serviço de qualidade voltado para a carga de
doenças que temos. Isso implica repensar o SUS. Como enfrentar essa
carga de doenças? Precisa de muito mais intersetorialidade. Essas causas
não se enfrentam com remédio e hospital, mas com maior capacidade de
ação social.
Couttolenc: O SUS e o sistema como um todo, da forma como o serviço de
saúde está organizado, não fazem frente ao desafio. O SUS herdou da
história o desafio de, ao mesmo tempo, recuperar o tempo perdido - ainda
temos crianças morrendo de diarreia - e o surgimento do perfil
epidemiológico, que exige outra organização. O SUS foi bem-sucedido ao
recuperar o atraso, ajudado pela transição demográfica, que implicou ter
menos crianças para tratar.
Temporão: Uma série de transições vai impactar o sistema. As três
principais são a demográfica, a epidemiológica e a alimentar. Estamos
nos aproximando do padrão de diabetes tipo dois e hipertensão arterial
dos EUA. Em 2030 vamos ter mais brasileiros acima de 60 anos do que
entre 0 e 19 anos. As demências senis, distúrbios neuropsíquicos,
depressão vão ser muito importantes.
Scheffer: Os pontos a repensar são: financiamento, gestão, política de
recursos humanos e relação público-privado. Há uma descontinuidade, cada
gestão cria uma marca, uma saída, uma nova porta de entrada no SUS. A
gestão é fragmentada, dificultando a organização do sistema. Talvez
tenhamos ido longe demais na municipalização. O SUS alcançou uma base
legal, experiência técnica e operacional, mas tem um problema de
sustentabilidade política e financeira. A participação da sociedade é
fundamental.
Couttolenc: Tem muita ineficiência sistêmica que decorre da dualidade
entre público e privado, com sobreposição, setores que não conversam
entre si, médicos que pulam de um lado para o outro. Eu gostaria que
evoluíssemos de discutir o SUS para discutir o sistema de saúde. O SUS
pretende ser o sistema único, mas não é. Para mudar isso, não se trata
de estatizar o privado, mas trazê-lo para dentro do desenho de um
sistema único.
Vecina: Eu acrescentaria a participação do setor de saúde na produção de
valor, pela ativação da indústria em torno da saúde. Equipamentos,
medicamentos, prestação de serviços hoje geram mais de 8% do PIB e são
um dos maiores empregadores do país.
Temporão: O modelo do complexo industrial da saúde no Brasil é inovador.
Envolve o BNDES, o setor privado, laboratórios, o poder de compra do
Estado como promotor da internacionalização da capacidade de produção.
China e Índia são grandes "players" no mercado internacional de
genéricos, mas a produção industrial e o setor de saúde não têm nenhuma
relação. Suas populações não têm acesso aos genéricos que eles exportam.
Estamos tentando fazer uma coisa diferente.
Scheffer: O Sistema Único de Saúde é o sonho de que as pessoas possam
ter acesso à saúde de acordo com sua necessidade e capacidade de
contribuição, não de pagamento. Acreditava-se que a classe média estava
totalmente divorciada do SUS. Parece que não é bem assim. O que vamos
fazer com nossa riqueza coletiva, se o Brasil está crescendo? Vamos
investir no projeto de um sistema único, universal, de qualidade, ou
vamos ficar no sistema estratificado, desigual, injusto? A saúde pública
está na pauta como nunca.
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