Valor Econômico - 04/10/2013
De todos os longas-metragens que rodou, quase 70, Fanny Ardant nunca
se esqueceu de "A Mulher do Lado" (1981), sua primeira incursão pelo
universo do diretor François Truffaut (1932-1984). "Talvez Mathilde
Bauchard, minha personagem no filme, ainda me assombre tanto por ter
sido a mais próxima de mim de toda a minha carreira. Por escolher ver a
vida por um ângulo trágico, sempre acreditei ser possível morrer de
amor. Não necessariamente a morte física, mas a da alma, que é ainda
mais triste", diz a francesa de 64 anos, projetada mundialmente ao
estrelar com Gérard Depardieu a história dos amantes que se reencontram e
caem novamente nas armadilhas que os afastaram anos antes. A atuação
rendeu a Fanny sua primeira indicação para o César, o Oscar francês.
"Quem nunca viveu uma paixão sem remédio, daquelas em que o casal não
consegue ficar junto nem se separar, como em 'A Mulher do Lado', não
sabe o que é o amor."
Por já não receber tantos convites para filmar romances ("como se os
sexagenários perdessem a capacidade de amar", diz), Fanny disse um
sonoro "sim" quando a cineasta francesa Marion Vernoux a chamou para
rodar "Os Belos Dias". Uma das atrações da 15ª edição do Festival do
Rio, que ocorre até quinta-feira, o drama segue os passos de Caroline,
uma dentista forçada a se aposentar. Com a agenda livre pela primeira
vez na vida, ela tenta ocupar o tempo num clube para a terceira idade.
Mas em vez de se dedicar às aulas de teatro ou de computação, Caroline
inicia um caso extraconjugal com um professor com idade para ser seu
filho (Laurent Lafitte), o que desencadeia o seu redespertar erótico.
Depois da passagem pelo Rio (com exibições neste sábado, às 13h30 e
21h45, no Estação Rio 1), o filme estreia no circuito comercial
brasileiro no dia 11.
"O que mais me fascina na personagem é o seu espírito livre, a ponto
de se lançar no romance, ainda que ela ame muito o seu marido
[interpretado por Patrick Chesnais]", afirma a atriz. "As tramas que
envolvem traições no cinema de hoje muitas vezes tentam pateticamente
justificar a ação, com um casamento infeliz, por exemplo. Ninguém
considera que uma mulher pode decidir viver um tórrido caso simplesmente
em nome do desejo e do prazer."
Para Fanny, o filme trata da "disposição para abraçar a vida
intensamente", o que segue na contramão do conformismo, "algo que se
espera de uma mulher de mais 60 anos". "Quando amamos a vida, estamos
abertos e aceitamos o que ela nos propõe, por mais maluca que seja a
oferta. O que costuma nos impedir de viver, independentemente da idade, é
o medo. Seja o medo das consequências dos nossos atos ou do julgamento
que os outros farão de nós. Felizmente, vivi tudo o que pude e nunca
liguei para a opinião da sociedade", diz a atriz, que foi a última
companheira de Truffaut, com quem teve uma filha, Josephine, de 30 anos.
"François foi o homem da minha vida", afirma Fanny, que também rodou
"De Repente num Domingo" (1983) com o diretor da nouvelle vague. Antes
dele, ela foi mulher do ator francês Dominique Leverd, pai de sua
primeira filha, Lumir, de 37 anos. Depois de Truffaut, ela viveu com o
produtor italiano Fabio Conversi, pai de sua terceira filha, Baladine,
de 23 anos. "Quando impomos regras a nós mesmos, a existência vira um
tédio. Só recebe os presentes da vida quem está de coração aberto. É
melhor se machucar do que deixar de viver."
O fato de Fanny ser um ícone do cinema francês ou ter a imagem
eternamente associada à da "femme fatale" nunca influenciou as suas
escolhas nas telas. "Sempre acho que estão falando de alguém que não
conheço quando falam de mim. Nunca fiz esforço para projetar isso ou
aquilo com as personagens que interpretei. Sempre gostei de ser uma
mulher contraditória, o que me libertou imensamente", comenta. "Talvez
por isso eu nunca tenha ousado me engajar na política, apesar da minha
inclinação pelos partidos de esquerda. Ainda que os políticos estejam
totalmente desacreditados hoje em dia, o discurso ainda exige certa
coerência. Só que a vida não é assim. Viver é, muitas vezes, administrar
sentimentos e pensamentos opostos."
O olhar curioso e a leveza para encarar a profissão como "um jogo"
foram qualidades determinantes na longevidade de sua carreira, na visão
de Fanny. "Como atriz, nunca me levei a sério demais." Todos os prêmios
que conquistou (como o César por "Loucas Noites de Batom", em 1996), ao
longo de mais de 30 anos nas telas, nos palcos e nos estúdios de TV,
foram encarados como "prazeres de criança". "Recebi os troféus como se
eu fosse uma garotinha diante de um sorvete. Sempre tomei na mesma hora
por saber que aquilo não duraria para sempre. A maior recompensa sempre
foi o fato de eu ganhar a vida fazendo o que mais amo. Não há luxo
maior."
Embora a paixão pela atuação continue intacta, Fanny volta a se
arriscar atrás das câmeras com "Cadences Obstinées", produção francesa
de baixo orçamento que ela acabou de filmar em Lisboa. A atriz estreou
como cineasta em 2009, com "Cinzas e Sangue", sobre uma viúva exilada no
sul da França que decide retornar à Romênia para o casamento da prima.
"De todos os cineastas com quem trabalhei, os que mais me marcaram foram
os que filmaram com paixão, como Truffaut, Ettore Scola e Michelangelo
Antonioni. E é isso que eu procuro imitar, antes de mais nada. Uma
filmagem precisa ser como um bom caso de amor: rápido e intenso",
afirma, abrindo um sorriso.
Para gritar "ação!" pela segunda vez num set, Fanny escolheu uma
trama que ela mesma escreveu. Com estreia prevista em dezembro na
França, "Cadences Obstinées" retrata a trajetória de um arquiteto
obstinado em restaurar um antigo hotel em ruínas, enquanto seu casamento
com uma violoncelista desmorona. "Sempre quis contar o fim de uma
história de amor com o mesmo empenho com que cineastas costumam narrar o
começo. Enquanto o hotel é construído, a relação é desconstruída." À
medida que o dia da inauguração se aproxima, um abismo nascerá entre o
casal, vivido pela italiana Asia Argento e pelo português Nuno Lopes.
"Para mim, não há nada mais doloroso do que testemunhar a morte de um
grande amor."
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