sábado, 19 de outubro de 2013

Poeta do coração brasileiro - Ailton Magioli‏

Estado de Minas 19/10/2013

Poeta do coração brasileiro


Ailton Magioli



...Eu não ando só
Só ando em boa companhia
Com meu violão
Minha canção e a poesia...



Com Toquinho o maduro Vinicius reencontra os melhores momentos de sua juventude e renova seu público com canções mais simples e otimistas (Arquivo EM)
Com Toquinho o maduro Vinicius reencontra os melhores momentos de sua juventude e renova seu público com canções mais simples e otimistas


Para o poeta e professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Eucanaã Ferraz, a poesia de Vinicius de Moraes é um exemplo de liberdade. “Pensando como poeta, considero que podemos ver como uma grandeza inestimável o fato de Vinicius ter trabalhado, simultaneamente, com as conquistas modernas e o acervo da tradição poética ocidental”, justifica.

“Vinicius foi um exímio manipulador do verso livre – muitas vezes longo, largo, pleno de ressonâncias melódicas –, mas também do verso metrificado e da forma fixa, tendo sido pioneiro na reincorporação do soneto à poesia moderna no Brasil. Ele usou com liberdade rimas e variados efeitos rítmicos de corte e montagem, somando a isso uma quebra de hierarquias que possibilitou a abertura do poema a experiências sintáticas várias, bem como a qualquer palavra, incluindo-se criações inesperadas com a língua, não só a portuguesa; mas ao lado de rupturas surpreendentes, incorporou com sabedoria a fala mais simples e cotidiana”, acrescenta Eucanaã.

Para o professor, de tudo isso resultou um poeta vigilante, aberto à experimentação formal e à expressão dos sentimentos, capaz de pôr em movimento formas em que tradição e renovação jamais se antagonizam. Ao avaliar a obra do Poetinha, Eucanaã Ferraz admite que, Vinicius de Moraes é exemplo acabado de artista que, com o tempo, foi sobreposto à obra.

“Sempre desconfiei de que os versos do poeta mais popular e mais amado do Brasil eram insuficientemente lidos. Uma espessa matéria narrativa – envolvendo seus nove casamentos, os muitos amigos, a boemia, o uísque, o desprendimento, o gosto por diminutivos carinhosos, o desdém pela gravata e pelas formalidades – acabou por engendrar, sem dúvida, uma espécie de mitologia”, reconhece.

“Considero que, hoje, estamos indo além disso. Mas, de qualquer modo, também devemos considerar que o mito resultou da própria desejável e saudável popularidade de Vinicius, sendo esta, sem dúvida, menos uma consequência de sua atuação como poeta que o resultado de sua atividade como letrista”, salienta Eucanaã.

Mas para não dar a falsa impressão de que tudo é tão simples, o também poeta acrescenta que é preciso, por outro lado, sublinhar que a popularidade foi o efeito de um caminho trilhado pela poesia inicialmente marcada por um isolamento algo aristocrático de fundo religioso, “mas que foi se abrindo afetiva e esteticamente, pondo-se em diálogo expressivo com seu tempo, com o homem comum e seus dramas cotidianos”.

 Vale notar também, na opinião de Eucanaã Ferraz, que a escrita de Vinicius acata mais a clareza que o hermetismo; nela a experimentação formal não é um fim em si mesmo, antes colocando-se ao lado de formas e temas caros à tradição lírica e convivendo com traços coloquiais, vocabulário e sintaxe correntes. “Por fim, a transfiguração do real não exclui a incorporação da experiência ordinária”, garante. Para Eucanaã, tais escolhas não deságuam num equivocado pacto de reconhecimento com o leitor, como se os poemas apenas confirmassem o já sabido. “Bem ao contrário, a palavra de Vinicius é poesia no sentido pleno: o mundo recriado.”

“Sem poder descer a detalhes, observo que a musicalidade da poesia de Vinicius aparece num conjunto de características que incluem ritmo, timbre, fluidez melódica, deslizamentos sintáticos, recursos da fala cotidiana, entre outros. Mais que isso, porém, penso que Vinicius pôde se tornar letrista porque sabia adequar a escrita à melodia, sem sobreposição da primeira sobre a segunda e vice-versa, e também porque sentia-se à vontade para trabalhar em parceria”, defende o professor.

Sofisticação
Para Eucanaã Ferraz, é impressionante a capacidade de Vinicius em acomodar a escrita à música, compreendendo as necessidades da canção, entendida como um corpo único, equilibrado e indivisível. “Quanto ao que havia de poético em suas letras, talvez valha a pena somente ponderar que, com sua obra, o cancioneiro popular passou a incorporar uma inteligência sofisticada em diálogo com as experiências modernas, até então restritas à poesia escrita.” Ele avalia que, nesse sentido, Vinicius foi o primeiro a derrubar as fronteiras entre literatura e canção popular, entre a erudição dos livros e a fácil comunicação do canto.

“Antes de os anos 1960 preconizarem o fim das barreiras entre alta e baixa cultura, Vinicius, desassombradamente, deu forma a uma série de mudanças comportamentais que marcariam a história cotidiana do século 20. Se o encaminhamento do poeta, já laureado, diplomata, para a canção popular não era previsível, ela iria se mostrar, adiante, em tudo coerente com a atuação artística e intelectual de Vinicius. De sua popularidade, podemos inferir que foi, portanto, um traço de sua complexidade, na medida em que o aplauso frustrava as expectativas conservadoras, desmontava hierarquias socioculturais e fundia estratos diferentes e aparentemente antagônicos da cultura”, salienta.

De acordo com o professor, Vinicius foi um excepcional tradutor dos sentimentos mais desesperados ou mais sutis, das paixões e da solidão, da finitude e do desejo de eternidade. E cita canções como Se todos fossem iguais a você, Eu sei que vou te amar, Garota de Ipanema, O que tinha de ser, Insensatez, Berimbau, Samba da bênção, Minha namorada ou Tarde em Itapuã.

Eucanaã faz questão de também destacar a relação que o brasileiro mantém com o Vinicius poeta: “Lembro que não são apenas as palavras cantadas que permanecem na nossa memória. Todos, afinal, sabemos de cor alguma passagem dos célebres Soneto de fidelidade, Soneto do amor total, Soneto de separação, O operário em construção, O dia da criação e Rosa de Hiroshima. E, sim, lembramo-nos do seu rosto, da sua voz, de passagens biográficas, pois que vivemos com este criador uma espécie rara de intimidade, dentro da qual a admiração e descoberta nunca cessam”, conclui.


Arte de brincar com seriedade

...Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não...

Muito mais que uma parceria, o encontro de Vinicius de Morais com Toquinho foi uma troca de energias positivas. “Ele usufruiu de minha juventude e eu da experiência dele”, afirma Toquinho, admitindo ter havido uma “adaptação perfeita” entre os dois, já que tudo que Vinicius gostava de fazer ele também gostava. “Tocar violão, curtir os temas que iam saindo, comer bem, viver a noite ao lado de amigos e mulheres bonitas”, lista o cantor, compositor e instrumentista, com quem Vinicius teve sua parceria mais positiva.

“Dessa relação profissional e humana resultaram muitas histórias, que deram origem a tantas canções. Colocávamos a vida sempre na frente da arte. Nosso cotidiano, prazeroso e fértil, era a principal inspiração. Os temas das canções nasciam desse cotidiano, do prazer de viver. Compúnhamos naturalmente, sem sacrifícios, nossa música é caracterizada pela simplicidade. É harmoniosa, agradável de ouvir”, avalia Toquinho.

Quando começou a trabalhar com o Poetinha, em 1970, Vinicius ainda evitava viajar de avião. “Então fomos para a Argentina de navio. Sentia uma sensação estranha, não sabia direito o que eu ia fazer lá. De repente, estava a bordo de um navio junto com Vinicius de Moraes, um ser humano grandioso de quem só conhecia o que ele tinha escrito e cantado por aí. Sei que na primeira noite no navio eu passei muito mal, no meu quarto, enjoado, com tudo a balançar por todos os lados. E Vinicius sentado na escrivaninha, segurando o copo para que ele não caísse, conversando naturalmente, sem se alterar”, recorda o cantor, salientando que o Poetinha ficou lá, ao lado dele, não como pai, mas alguém com pretensões de se fazer amigo.

“Nossa relação começou assim e, logo de cara, passei a vê-lo um pouco como irmão, porque ele não sabia ser velho, o que na realidade ele não era. Vinicius sempre se cercou de pessoas jovens, tanto mulheres quanto parceiros. Isso o renovava, talvez fosse o grande combustível de sua poesia. E não demorou muito para as canções começarem a brotar”, diz Toquinho. Ao ser questionado sobre o rendimento da parceria dos dois, ele afirma que transportavam, simplesmente, a vida para a arte. “Compor, para nós, era uma brincadeira exercida com seriedade. Nesse diapasão criativo, fizemos mais de 100 canções, gravamos em torno de 26 discos e montamos mais de mil shows. Dificilmente se construirá outra parceria igual”.

A primeira canção composta pela dupla começou a nascer em junho de 1970, exatamente na volta da Argentina, onde eles haviam feito uma série de shows na boate La Fusa com a participação de Maria Creuza. Toquinho havia deixado com Vinicius um tema de Albinoni, transformado por ele em samba, que ganharia letra do poeta em setembro daquele ano, durante viagem para Salvador. “Aí, sim, nasceu a nossa primeira canção: Como dizia o poeta, que cantamos nos shows da Bahia, já sentindo a reação positiva das pessoas’’. Geralmente, de acordo com o cantor, Vinicius colocava letra em suas melodias.

Ouvido interno
“Quando juntos, trabalhávamos às vezes música e letra. Ou então eu deixava gravado um tema e ele colocava letra no momento que achasse mais adequado. Musiquei poucos poemas dele. Prefiro fazer a melodia antes”, observa Toquinho que, antes mesmo de trabalhar com Vinicius, já fazia uma música simples, porém harmoniosa e agradável aos ouvidos. “Quando comecei a compor com ele, essa característica se acentuou, porque Vinicius não tinha medo do lugar comum. Vinicius tinha um ouvido interno muito aguçado”, explica.

Toquinho recorda momentos criativos ao lado do poeta. “Muitas vezes, eu improvisando no violão, e ele me alertava: ‘Toco, tem uma melodia aí que você acaba de passar por ela’. Então eu recuperava o acorde e saía outra canção. Cada palavra tem um som que se ajusta à melodia. Vinicius era mestre nisso. Usar a palavra exata para cada acorde. Aprendi a valorizar esse detalhe, tão importante na composição final”, explica. Ele conta que não havia cobrança de parte alguma na parceria dos dois.

“A junção melodia e letra dava-se naturalmente, pela capacidade de ambos em ajustar as coisas. Afora outras facetas ligadas à música, como comandar um espetáculo, a escolha do repertório, a dinâmica de um show, o jeito de tratar as pessoas, tudo isso foi sendo incorporado por mim durante a parceria com Vinicius e aprimorado na sequência de minha carreira”, garante Toquinho.

Nas palavras dele, no trabalho dos dois há canções insinuantes, que chegavam já dominando e se apoderando dos sentidos, enquanto outras, mais comedidas, tiveram de ser tratadas com mais demora. “Há que perceber essas condições. Não deixar escapar o momento certo ou não apressar o tempo do aprimoramento”, justifica, lembrando que não havia exigências entre eles. “Predominavam a espontaneidade e a percepção do que fazer e de como fazer para atingir a beleza do entrosamento”, conclui. (AM).


Parceiros juravam fidelidade

Mesmo apontado por muitos como o parceiro por meio do qual Vinicius de Moraes melhor se expressou, Carlos Lyra, que integra a chamada “Santíssima Trindade” (ao lado de Tom Jobim e Baden Powell), acredita que Vinicius fez canções belíssimas tanto com os três quanto com Toquinho, cada qual com seu estilo particular.

Exigente consigo mesmo, o músico carioca contabiliza cerca de 25 composições ao lado de Vinicius, diante da “capacidade de jogar fora o que acho que não é excelente, guardando apenas as melhores”. A parceria, recorda, nasceu no dia em que “cheio de coragem, liguei para a casa de Vinicius, me apresentando. Ele disse que já tinha ouvido falar de mim e perguntou o que eu queria. Respondi: ‘Umas letrinhas!’. E ele me mandou ir à casa dele imediatamente”, recorda.

“Ele me recebeu, me mostrou seu gravador e pediu que eu colocasse todas as melodias lá e fosse para minha casa aguardar, que em uma semana as letras estariam prontas. Uma semana depois, ele me liga dizendo que já havia feito todas e me chamou para ouvi-las. Quando ouvi a série de letras que Vinicius havia feito pra mim, fiquei boquiaberto com a qualidade e com a facilidade com a qual ele sentia o que minha música queria falar. Fiquei sem palavras e atônito, de uma maneira que ele pensou que não estava gostando. Imagina, eu estava bobo”, conta Carlos Lyra.

Na opinião do músico, o produto da parceria dos dois seria a mistura dos gêneros clássico e romântico, porque ele é um compositor neoclássico e Vinicius de Moraes um poeta romântico. A primeira canção com a assinatura da dupla foi Você e eu e a segunda Coisa mais linda. “Exatamente como expliquei sobre o início da nossa parceria”, recorda Carlos Lyra. Ao contrário dos dias de hoje, quando parcerias são feitas inclusive via e-mail, além do telefone, naquela época as pessoas costumavam se encontrar pessoalmente para trabalhar. “Hábitos antigos, presumo”, ironiza Lyra, salientando que ele e Vinicius costumavam fazer no máximo duas canções a cada encontro.

 “Como ocorreu em uma tarde, quando terminamos a Marcha da Quarta-feira de Cinzas e o Hino da UNE (União Nacional dos Estudantes)”, revela o parceiro do Poetinha. Segundo Carlos Lyra, o sistema mais utilizado pela dupla era ele fazer as melodias, que demoravam o tempo que fosse. “Quando tinha uma boa quantidade, ia à casa de Vinicius e deixava-as no gravador. Ele então letrava uma por uma”, acrescenta. Afinal, Vinicius era um parceiro exigente? “Não, era exatamente o inverso. Os parceiros como eu e Tom Jobim é que cobrávamos dele a excelência. Quanto ao tempo, ele era rápido, uma vez que a música o inspirasse”. De acordo com Lyra, como era extremamente ciumento, a única exigência de Vinicius era de que não mostrassem músicas com outros parceiros.

Juntos, Lyra e Vinicius bateram recorde ao escreverem uma comédia musical com 11 composições, em uma única semana. Trata-se de Pobre menina rica, de 1962. O espetáculo estreou no ano seguinte, no Rio de Janeiro, com Vinicius de Moraes na leitura da sinopse, além de Carlos Lyra, Nara Leão e o conjunto de Roberto Menescal na interpretação das canções, algumas das quais se tornaram clássicos da MPB.

Valsa de Francis
Francis Hime já conhecia Vinicius de Moraes desde 1956, quando em uma festinha na casa da mãe, a pintora Dália Antonina, em 1964, tocou para ele a sua valsa Eurídice. Encantado com a energia dos 16 anos do rapaz, o Poetinha disse para a mãe que o filho deveria seguir carreira musical. Passado o impacto daquele encontro, Francis e Vinicius trataram de se encontrar para fazer algo juntos, inaugurando a parceria com Sem mais adeus, cuja “letrinha” estava escrita em um “guardanapinho de papel”, bem ao gosto do poeta.

Desde então, Francis fazia a música primeiro e depois Vinicius colocava letra nas composições. “O que acontecia com uma facilidade enorme, já que Vinicius era muito musical”, ressalta o compositor, lembrando que a exceção no processo foi uma melodia feita simultaneamente pelos dois – O sequestrador – que veio ganhar letra de Adriana Calcanhotto anos depois. Para os estudiosos da obra de Vinicius, Hime foi o parceiro que mais investiu na alma romântica do poeta.

 Eles fizeram cerca de 20 canções, a maioria produto dos encontros constantes que mantinham. “Em geral eu ia para a casa dele e ficava tocando as músicas no piano ou no violão, e ele, com a máquina de escrever, esboçando a letra, até que surgisse algo que o encantasse.” A única vez que fizeram duas músicas em uma mesma noite foi com Anoiteceu e Tereza sabe sambar. Além da amizade que exigia dos parceiros, Vinicius também cobrava fidelidade. (AM)

Balada de Ouro Preto Hóspede titular do Pouso do Chico Rey, o Poetinha manteve história de amor com a cidade mineira. Carlos Bracher conta que Vinicius concordou em posar nu para retrato, que não chegou a ser pintado 

Ailton Magioli


 (Arquivo EM)


...De nada adianta
Ficar-se de fora
A hora do sim
É um descuido do não...

Carlos Bracher e Vinicius de Moraes, em Ouro Preto, em 1974;   pintor mineiro destaca o poder de sedução do poeta (Acervo pessoal)
Carlos Bracher e Vinicius de Moraes, em Ouro Preto, em 1974; pintor mineiro destaca o poder de sedução do poeta

Quarto nº 1 do Pouso do Chico Rey, hoje batizado com o nome do poeta (Maria Tereza Correia/EM/D. A Press)
Quarto nº 1 do Pouso do Chico Rey, hoje batizado com o nome do poeta


Ricardo Correia de Araújo, atual proprietário da pousada,   na janela do quarto de Vinicius: vista para o Teatro Municipal (Maria Tereza Correia/EM/D. A Press)
Ricardo Correia de Araújo, atual proprietário da pousada, na janela do quarto de Vinicius: vista para o Teatro Municipal


Se nas passagens por Belo Horizonte, onde cativava principalmente o circuito universitário, ele era insuperável, imagine o que Vinicius de Moraes não provocou na histórica Ouro Preto? Hóspede constante do quarto nº 1 do Pouso do Chico Rey, aposento hoje batizado com seu nome, das janelas do andar superior do casarão de 1790, Vinicius vislumbrava, à direita, a lira de pedra que decora a fachada do primeiro Teatro Municipal da América do Sul (1770, ainda em atividade) e, à esquerda, a Igreja do Carmo (1772).

Amigo pessoal do casal proprietário da pousada, Lilli e Pedro Luiz Correia de Araújo, o letrista e poeta carioca se tornou verdadeira atração da cidade histórica mineira, onde teria morado por seis meses, na década de 1960, para evitar maiores problemas com o governo militar, depois de afastado da carreira diplomática e aposentado compulsoriamente pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5). “Dizem que a ideia de deixá-lo aqui por um tempo foi do então governador mineiro Israel Pinheiro”, revela Carlos Bracher, que acabou se tornando amigo de Vinicius de Moraes em Ouro Preto.

 “Interessante: ele vem pra cá com a atriz Domitila do Amaral, que teve ideia de criar a Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop), depois da realização de um festival de arte na cidade”, acrescenta o artista plástico. Atual proprietário do Pouso do Chico Rey, Ricardo Correia de Araújo, o neto do casal Lilli e Pedro Luiz, era menino na época, mas lembra que a simples chegada de Vinicius na pousada era motivo de festa. “Um evento”, nas palavras do hoteleiro. “Ele vinha cheio de presentes, mas a vovó não gostava de deixar a gente perto quando ele falava de política. Em geral, no entanto, era uma festa, com muito uísque, carteado e samba, que o Vinicius tocava na caixa de fósforo”. Às vezes, para disfarçar, o poeta chegava à cidade de chapéu e capa pretos, além de usar óculos escuros.

 “Em Ouro Preto/ Mostrei-te o Pouso do Chico Rey/ Onde a amiga Lilli/ Deu-te uísque a beber/ Depois fomos comer lá no Pilão/ Galinha ao molho pardo”, poetiza Vinicius no livro História natural de Pablo Neruda – A elegia que vem de longe, no qual fala da visita à pousada ao lado do amigo e poeta chileno, em agosto de 1974. Referências a Vinicius no local, aliás, não faltam. Além das cartas que ele endereçava sempre a Lilli – algumas delas devidamente emolduradas e espalhadas pelas paredes da pousada –, há fotos e outras lembranças. Vinicius acabou por se transformar em uma espécie de relações públicas do Pouso do Chico Rey, que indicava aos amigos.

“Querida Lilli e Ninita (sócia da proprietária). Meu amigo David Zingg – um dos maiores fotógrafos que conheci – vai a Ouro Preto para uma reportagem ...”, anuncia na apresentação do norte-americano que viveu no Brasil e registrou momentos importantes da bossa nova. “Mil saudades. Logo que Garota de Ipanema estiver terminado, darei um pulo aí...”, diz a respeito do filme que Leon Hirszman dirigiu, em 1967, inspirado na célebre parceria com Tom Jobim, de 1962. Vinicius assinou o roteiro do longa-metragem ao lado do diretor.

Em outra correspondência, de 1972, à “minha Lilli muito querida”, Vinicius fala das amigas Alba e Maria Helena, que estavam indo a Ouro Preto, além de anunciar que vai se apresentar em Belo Horizonte ao lado de Marília Medalha e do Trio Mocotó. Na mesma correspondência, ele manifesta o desejo de fazer “um espetáculo (um só), numa matinée, aí no teatrinho de Ouro Preto, a preços bem populares. Uma coisa mais afetiva do que qualquer sentido de lucro, que poderia, talvez, ser no dia seguinte ao do nosso último show em Belo Horizonte”.

Além de Vinicius de Moraes, Carlos Scliar, Alberto da Veiga Guignard, Elizabeth Bishop, Burle Marx, Norma Benguel, Pablo Neruda e muitos outros artistas se hospedaram na pousada, cujo livro de hóspedes foi inaugurado pelo poeta, em 1968, com poema em homenagem à proprietária. “Amiga, dizer nem ouso/ De certa coisa que sei/ Desde então acho-me em gozo/ Das coisas que sempre amei”. Pouco tempo depois, ele fecharia o primeiro de tantos outros livros que ainda resistem no estabelecimento: “Lilly, minha princesa. Com estas palavras eu não termino: começo um novo livro de hóspedes”.

Homem nu

Do desejo manifestado de adquirir uma casa em Ouro Preto à ideia (consentida, mas não concretizada) de pintar o poeta nu, Carlos Bracher guarda boas lembranças de Vinicius de Moraes em Ouro Preto. “Era um homem de tremendo afeto e doçura, amabilíssimo com todos. Uma coisa extraordinária e marcante”, diz o artista plástico, sem poupar adjetivos.

A casa em Ouro Preto, que Vinicius acabou não adquirindo, seria transformada em miniteatro para apresentações, segundo o sonho do poeta. A pintura, inspirada na escultura Um grande homem desnudado, que Rodin fez de Victor Hugo, também acabou não ocorrendo, mesmo que Bracher tenha conseguido, em 1975, pintar um retrato de Vinicius.

Apesar de ter conhecido Gesse Gessy e convivido com Martita, duas das ex-mulheres do poeta, o artista plástico não lembra de tê-lo visto amando na cidade histórica mineira. “Só namoricos da hora, não do dia. Ele tinha a das 8h, a das 9h”, revela, salientando nunca ter visto um homem com tanto charme. “Vinicius foi um sedutor, as meninas avançavam, pulavam e se abraçavam nele”, recorda.

No ateliê, certa vez, ao lado de Vinicius e Martita, o artista plástico foi surpreendido com a declaração do poeta à mulher, logo depois da entrada da menina Blima, filha de Carlos Bracher. “Vinicius, você gosta de criança?”, perguntou Martita. “Teoricamente, sim”, respondeu o poeta.

Samba com João

Certa noite, um rapaz bateu na porta do Pouso do Chico Rey, pedindo para falar com Vinicius de Moraes, que o recebeu. Tratava-se do então estudante de engenharia metalúrgica João Bosco Mucci, que imediatamente lhe apresentou uma melodia.

Do encontro naquela noite nasceria o Samba do Pouso, além do conselho do poeta para que o então iniciante músico se mudasse para o Rio de Janeiro. O samba romântico, que inaugurou a parceria dos dois, ganhou registro do próprio João Bosco e do grupo Os Cariocas no disco dois do Songbook Vinicius de Moraes, que a Lumiar Discos lançou em 1993.

 Parceiro bissexto do poeta, João Bosco compôs com Vinicius Viva o amor, Rosa dos ventos e O mergulhador. Adepto da parceria bissexta, além de João Bosco, Vinicius desenvolveria trabalhos com Fagner, Carlinhos Vergueiro e Vicente Barreto, entre outros.

Em nome da liberdade

“Tem hotel e uísque bons? Então, compra as passagens de ida e volta do Vera Cruz (trem que fazia o percurso Rio-BH), aluga o quarto de hotel e providencia dois litros de uísque, que não vou cobrar nada pelo show”. O diálogo entre Vinicius de Moraes e Augusto José Vieira Neto, o Bala Doce, então diretor de arte e cultura do Centro Acadêmico Afonso Pena (Caap) da Faculdade de Direito da UFMG, dá a dimensão do quanto Vinicius cultivava a juventude na década de 1960. No dia e hora marcados, com Vinicius já na cidade, o show não pôde ser realizado no salão nobre da Escola de Direito, na Avenida Álvares Cabral, conforme estava agendado, diante da presença de soldados do Exército em frente ao prédio. Bala Doce conseguiu transferir o espetáculo para a grande área plana, já revestida de cimento, na qual estava sendo construído o novo prédio da faculdade, localizado na esquina das avenidas João Pinheiro e Álvares Cabral. De bata branca, o Poetinha entrou em cena aclamado por mais de 700 universitários, fazendo conferência sobre a liberdade antes de começar o show, que transcorreu sem qualquer interferência policial. Mais uma vez, os estudantes driblavam a ditadura militar que amordaçava o Brasil.

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