quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Tereza Cruvinel - Códigos da vida em rede‏

A expansão da internet passou a exigir um código de uso. Na proposta em debate no Congresso, é fundamental a garantia da liberdade de expressão, da privacidade e da neutralidade da rede



Estado de Minas: 07/11/2013 



Códigos da vida em rede

Há milênios, num lampejo ainda misterioso, o homem começou a se comunicar com os semelhantes. Foi a revolução da linguagem, que separou para sempre os dois reinos, da cultura e o da natureza. Há cinco mil anos, outro salto, o da escrita, separando a história da pré-história. Civilização e barbárie. Para boa parte dos antropólogos culturais, o surgimento da internet representa, para a sociedade contemporânea, revolução comparável a essas duas. Nunca antes tantas pessoas puderam se comunicar tão maximamente, e não mais apenas como receptores (como na TV), mas também como emissores.

O impacto social da rede ainda está em curso, e, por isso, é tão importante que o Brasil discuta o tema, como na audiência pública de ontem na Câmara, e tenha uma norma legal sobre seu uso, coerente com o nosso projeto de nação. Três garantias são importantes no projeto que será votado na próxima semana: a da liberdade de expressão, da privacidade e da neutralidade de rede.

A presença de tantas entidades na audiência pública de ontem explicitou o interesse e o envolvimento da sociedade civil com o tema. Repetiu-se muito no debate: embora tenha sido apresentado pelo governo há mais de um ano, depois de recolher sugestões de usuários e especialistas por meio da consulta pública aberta na internet pelo Ministério da Justiça, esse projeto não pode ser reduzido a matéria de interesse do governo, de um partido ou outro. Trata-se de uma política de Estado para a sociedade. O deputado Alessandro Molon (PT-RJ) foi um relator aplicado e diligente, estudou a matéria, dialogou com diferentes forças e atores, colheu muito reconhecimento ontem. Mas foi o primeiro a dizer que sua proposta consolida aspirações e proposições que a sociedade vem amadurecendo. Embora tenha ganhado ressonância depois das revelações sobre a espionagem americana, devia estar sendo votada independentemente disso. A pedido da presidente Dilma, Molon incluiu o artigo que determina a guarda de dados de brasileiros em data centers situados no país, mas esse não é o ponto mais relevante. Importantes mesmo são os três acima destacados.

Nunca tantos foram tão livres para se manifestar como no vasto território da internet. Mas, sempre que se falou em regulamentar outros aspectos de seu uso, os apocalípticos e paranoicos de plantão anunciavam riscos para a liberdade de expressão. Radicalizando a liberdade hoje existente, que permite a retirada de conteúdos ofensivos por provedores e gestores de espaços na rede, a pedido dos ofendidos, o projeto assegura que os provedores de conexão e aplicação não serão responsabilizados por tais conteúdos, e que eles só serão excluídos por ordem judicial. Talvez haja excesso nisso, pois tal ordem virá no ritmo lento da Justiça, à qual nem todos têm acesso. Mas a liberdade tem seus preços, e, se não pagarmos esse, não avançaremos nos outros dois aspectos.

Em relação à privacidade, o Marco Civil estabelece que o sigilo das comunicações pela rede não pode ser violado, ficando os provedores obrigados a guardar, pelo prazo de um ano, o registro da navegação de cada internauta, em ambiente controlado, não podendo delegar essa tarefa a terceiros. As grandes corporações, como redes sociais, por exemplo, serão obrigadas a apagar todos os dados de um perfil, se o usuário assim pedir, evitando que sejam utilizados por empresas, hackers, vendedores e espiões de toda espécie. A captura e armazenagem dos dados pessoais só poderão ocorrer com prévia autorização. Hoje, quem navega não tem controle sobre os dados, sobretudo o que revela em suas conexões, sejam comerciais ou meramente interativas. Há quem seja contra, argumentando que quem entra na chuva é para se molhar. É uma posição, mas a privacidade é um direito constitucional, que entre nós vem sendo negligenciado, mas não foi ainda revogado. Em todo o mundo, em contraponto à hiperexposição, ela vem sendo redescoberta e valorizada.

Por fim, o ponto mais polêmico, a chamada neutralidade de rede, objeto de forte oposição das empresas de telecomunicações, que planejam diversificar seu “modelo de negócio”, vendendo pacotes de acesso a conteúdos diferenciados. O mais barato daria acesso apenas a navegações banais e uso de e-mails, outro a sites de áudio e vídeos, outro ainda às redes sociais e assim por diante. Pode ser bom para elas, mas isso atenta contra a democracia. Os mais pobres, que mais têm a ganhar com o acesso à rede, teriam uma internet de terceira categoria. A proposta assegura às teles o direito de vender pacotes de diferentes velocidades: dois megas, 10 megas etc., com preços diferenciados. Mas com acesso ilimitado em cada um. Ainda que a conexão fique lenta. Quem melhor resumiu a neutralidade de rede, com sua linguagem de repentista, foi o deputado Paulo Rubem Santiago (PDT-PE), ao dizer que “o feirante não pode determinar o que cada um fará com a farinha que comprou na feira”.

Pacífica a votação não será. Alguns dirão que o Brasil inventa mais uma jabuticaba, que a internet não precisa de marco algum. Não precisou até aqui, mas outros países também já adotaram ou estão discutindo códigos de uso. A bancada das teles entrará em campo. O líder do PMDB, Eduardo Cunha, pedirá que seja votado o projeto original do governo, não o substitutivo de Molon. Bom de briga, seu alvo ontem foi o representante do grupo Intervozes, Pedro Ekman, que fez um discurso ameaçador, a ele, ao PMDB e aos congressistas que ousarem votar contra. Cunha passou-lhe um sabão e dezenas de deputados o seguiram, repelindo o discurso desqualificador do Legislativo dentro do próprio plenário. Os brios estão voltando.

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