Austereza
A esmagadora maioria se atira ao bufê como se fosse uma boia depois de um naufrágio
Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 05/12/2013
Circula na
internet um vídeo sobre festas públicas em quatro países: Canadá,
Indonésia, México e Brasil. Canadá, tudo bem, é país civilizado, mas a
comparação com a Indonésia e o México deixa o Brasil muito mal. O mais
grave é que a cena – a que já assisti inúmeras vezes – se repete nas
festas de casamento em salões luxuosos e nas casas de pessoas muitíssimo
bem de vida. Festas públicas, nos casos filmados, são aquelas em que há
dois bufês quilométricos, paralelos, ao ar livre, com toalhas brancas e
fileiras intermináveis de alimentos iguais. No Canadá, dada a partida,
cada comensal pega um pedaço civilizado para comer civilizadamente e só
então voltar ao bufê, se continuar com fome. Na Indonésia e no México,
que são o México e a Indonésia, cada pessoa entre muitos milhares
recebia um pedaço pequeno do alimento quilométrico para comer com
austereza, o que significa dizer com a qualidade de austero,
frugalidade, moderação, considerando que não escrevo com compostura de
jeito e maneira: com-com não me soa bem. Na filmagem da festa
brasileira, de perto e de longe, o avança é indescritível. Patrícios e
patrícias, não necessariamente miseráveis, se atiram sobre os imensos
bufês como se dependessem daqueles comes para sobreviver – e tudo às
gargalhadas, como as de um imbecil que conseguiu encher meia fôrma de
alumínio, que deve ter levado de casa.
Dir-se-á que a festa é
“popular”, mas a canadense, a indonésia e a mexicana também o são. E o
mais grave, muitíssimo mais grave, é que a cena se repete nos casamentos
em salões de luxo e nos apartamentos duplex na Vieira Souto. Não
invento: assisti de perto. Tanto nos casamentos de luxo, em BH e no Rio,
quanto nos duplex na Vieira Souto, nenhum dos convidados passou fome
desde criança. Isso não obstante, a esmagadora maioria se atira ao bufê
como se fosse uma boia depois de um naufrágio. Boia, minha gente:
qualquer flutuador móvel utilizado para manter algo ou alguém à
superfície da água.
O exemplo do naufrágio pega mal, porque
naufragar, em nosso idioma desde 1223, pressupõe a ida ao fundo de
embarcação que tenha navegado, enquanto a educação do brasileiro,
inexistindo, não pode navegar. Ressalvo situações pontuais, como nos
churrascos dos peões pantaneiros, às quatro da tarde, depois de um dia
de trabalho que começou às duas da manhã. Respeitam a hierarquia da
empresa rural e a idade dos colegas de trabalho. Cada um tira pedaço
educado da costela que lá está assando desde cedo. E volta à fila para
servir-se três ou quatro vezes, quando poderia tirar imenso pedaço de
carne logo na primeira investida.
Nomes
Vargem-altense
ausente, foi homenageada a delegada Ancila Zanol, da Delegacia da
Mulher do Espírito Santo. Vi na tevê e dei um berro, porque me lembrei
da ancilostomíase, da anciloglossia e do adjetivo ancilar, velhos
conhecidos de um philosopho quase idoso. Fui ao leito encucado com o
nome de batismo da ilustre policial capixaba. Geralmente me esqueço do
assunto na manhã seguinte, mas hoje me lembrei e fui pesquisar antes de
conversar com o leitor de Tiro e Queda. Vargem-altense é relativo a
Vargem Alta, município desmembrado em 1988 de Cachoeiro do Itapemirim,
tem pouco mais que 20 mil habitantes e é vizinho de Domingos Martins,
terra de Ingrid, personagem de um dos meus romances.
Ancilostomíase
é grave anemia produzida no homem e em vários mamíferos por vermes
nematódeos das espécies Ancylostoma duodenale e Necator americano.
Anciloglossia é aderência congênita da língua ao assoalho da boca ou à
abóboda palatina, enquanto o adjetivo ancilar significa servil,
auxiliar, acessório, suplementar. Mas o melhor da história é Ancila como
nome de batismo, considerando que o substantivo feminino ancila
significa escrava, serva, mulher que presta serviços mediante pagamento
ou, ainda, mulher dedicada ao ascetismo, que, sabemos, significa
doutrina de pensamento ou de fé que considera a ascese, isso é, a
disciplina e o autocontrole estritos do corpo e do espírito, um caminho
imprescindível em direção a Deus, à verdade ou à virtude. Donde se
conclui que é melhor não concluir nada, enquanto o philosopho acaba de
faturar 240 palavras para gastar com o leite das crianças.
O mundo é uma bola
5
de dezembro de 1496: o rei Manuel I assina o decreto de expulsão dos
“hereges” de Portugal. Acho que foi a expulsão assinada em Muge, sobre a
qual falei na edição de ontem, quando citei os concheiros
pré-históricos daquela freguesia, o maior complexo mesolítico da Europa.
Faltou-me espaço para explicar que Mesolítico é período da Idade da
Pedra situado entre o Paleolítico e o Neolítico, caracterizado pela
mudança do clima gracial para pós-glacial, com a substituição das
estepes pelos prados e bosques, dando início à economia produtiva. Em
1732, inicia-se no México a construção de um edifício destinado ao
Tribunal da Inquisição. Dá para imaginar o que deve ter sido a
Inquisição à mexicana. Em 1792, começa na Assembleia Nacional, durante a
Revolução Francesa, o julgamento do rei Luís XVI. Hoje é o Dia da
Pátria na Tailândia.
Ruminanças
“Nunca procures penetrar os segredos do amigo.” (Horácio, 65-8 a.C.).
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