sábado, 14 de dezembro de 2013

O laboratório de Fonseca - José Castello



O Globo 14/12/2013

OS LEITORES QUEREM LER FICÇÕES, MAS ESPERAM QUE ELAS ESTEJAM MANCHADAS PELO ASSOMBRO DO REAL


De origem árabe, a palavra
“amálgama” se refere não só à
liga de mercúrio com outro
metal, mas tem também o significado
mais amplo de ajuntamento,
combinação, fusão, e
ainda o de confusão. Essa mistura — esse amálgama
— de significados me ajuda a ler “Amálgama”
(Nova Fronteira), o novo livro de contos de
José Rubem Fonseca. Fala não só na mistura, em
um mesmo livro, de 34 textos curtos e bastante
heterogêneos, mas também de uma estética que
leva cada um desses escritos a vacilar entre vários
gêneros e a experimentar novos caminhos.

Nas narrativas de Fonseca, os acontecimentos
parecem ficar sempre pelo meio, quebrados,
adulterados. Descobrimos a verdade só para esquecê-
la, já que a verdade toda é sempre insuportável
— como lemos em “Segredos e mentiras”,
o texto que abre o livro. As palavras, em vez
de ajudar, muitas vezes afogam quem as diz. Admite,
de saída, o narrador: “Tenho uma tendência
à prolixidade, uso mais palavras e frases do
que o necessário e acabo me tornando enfadonho”.
Os contos de Fonseca não são enfadonhos,
ao contrário — mas, apesar dos textos brevíssimos,
seus narradores parecem sofrer, quase
sempre, de alguma dificuldade para expressar.

Voltando à ideia do amálgama, é bom lembrar
que, na química, o mercúrio é um elemento metálico
pesado e venenoso. Trata-se do único metal
que mantém a forma líquida à temperatura
padrão — o que acentua seu caráter de disfarce e
de segredo. Na mitologia, Mercúrio é o deus da
eloquência e ocupa um lugar “entre” — é um
mensageiro que circula de um lado para outro
traçando correspondências e transmitindo informações.
Todos esses significados acentuam o
caráter complexo do amálgama e se refletem
nos relatos de Rubem Fonseca.

São histórias simples mas que, muitas vezes,
se situam para além de qualquer entendimento,
o que se evidencia no brevíssimo relato de seis
linhas (poema?) chamado “Sentir e entender”.

Afirma Fonseca, sem qualquer medo do lugar comum:
“A poesia não é para ser entendida é para
ser sentida”. Aponta, assim, para um velado, mas
forte, caráter poético não só deste, mas dos escritos
que ocupam o livro. A tese se desenvolve em
um conto como “O espreitador”, a história de um
homem que persegue mulheres nas ruas acreditando
na origem benigna de sua fixação. Um dia,
um psiquiatra lhe sugere, ao
contrário, uma origem trágica
para seu vício — que ele, enfim,
não através do pensamento,
mas dos sentimentos, entende
ser a verdadeira. A verdade se
camufla. A lógica da verdade
pode ser um exercício de mentira.
A verdade pode estar nas
brechas.

Não são temas fáceis de enfrentar
e, por isso, Fonseca define o
escritor como um sofredor. É o
que sofre de ideias que não sabe que tem, de sentidos
que lhe escapam, de motivos que ignora. Está
dito em “Escrever”, pequeno relato em que o autor
se detém para pensar no que faz: “A ficção consome
corpo e alma. Os poetas também poderiam ser incluídos
aqui, se eles não tivessem pacto com o diabo”.
No caso dos poetas, o suposto pacto os salva. Já
os ficcionistas ficam absolutamente sozinhos com
seu destino. “O ficcionista quanto melhor pior, sofre
mais, depois de algum tempo não aguenta o sufoco”.
Os mais sensatos, ele prossegue, desistem. Para
Fonseca, desistir pode ser a maior sabedoria de um
escritor.

O escritor deve lidar com imenso cuidado com o
real. Está em “Sonhos”: enquanto conserva como
um segredo suas fantasias sexuais
com a psicanalista, um analisando
consegue se conservar inteiro.
Mas quando, incentivado
pela ideia de “dizer toda a verdade”,
ele as revela, o real se impõe
de modo avassalador — a analista,
para sua surpresa, cede — e os
sonhos se desmancham. Por isso,
como está no relato seguinte, “Fábula”,
só devemos nos referir à realidade
se a deformamos. O que
são as fábulas? São relatos que
aproveitam uma ficção alegórica para sugerir a verdade.
A ficção não diz a verdade, ela apenas a sugere.
Só deformando a realidade, torcendo-a um pouco,
conseguimos aceitá-la. Só a alusão — e nunca o
olhar direto nos olhos do real — salva um escritor.

Mas Rubem Fonseca também não confia inteiramente
nas fábulas. Pensando na célebre fábula de
Esopo, e ao contrário de seu autor, defende a preguiça
da cigarra contra o empenho da formiga.
“Qual é a lição, o preceito moral desta fábula?
Que cantar é um crime que merece ser punido?
Que a alegria é um mal a ser combatido? Que o
desejo e o amor devem ser execrados?” — ele se
pergunta. “Entre a formiga e a cigarra, quem é pior?”
O narrador termina seu relato negando que
as fábulas de Esopo sejam uma lição de moral e
de astúcia, e sugerindo que o leitor as jogue no
lixo. Defronta-se, assim, com os perigos inerentes
à alusão, que, ao remeter para vários lados simultâneos,
em vez de clarear pode cegar. Risco,
mas também grandeza da ficção.

São difíceis as relações de um ficcionista com a
verdade. Em “Best-seller”, depois de escrever um
grande fracasso — um livro que não vende nada
—, um escritor ouve de seu editor o conselho:
“Ninguém quer mais ler ficção, a ficção acabou”.
Ele lhe pede que, em vez de escrever fantasias,
passe a escrever histórias reais, já que os leitores
de hoje só se interessam pelo real. Decidido a seguir
o conselho de seu editor, o autor passa a experimentar
situações de risco pessoal, pensando
em depois relatá-las em seu livro “verdadeiro”,
para assim chegar ao leitor que tanto procura.
Numa de suas experiências com o real, ele quase
morre — e é o relato dessa pequena tragédia que
toma as manchetes dos jornais. Em consequência,
seu livro anterior, o fracassado (e ficcional)
“Rua do pecado”, passa a vender muito. É o seu
fracasso diante do real, desmentindo a tese do
editor, que empurra o sucesso de sua ficção. Os
leitores querem ler ficções mesmo, podemos
concluir, mas esperam que elas estejam manchadas
pelo assombro do real.

“Amálgama”, o novo livro de José Rubem Fonseca,
tem, assim, um forte caráter experimental.
Cada relato é uma experiência diferente em busca
de uma nova posição diante da escrita. Todos
parecem amputados — mas a verdade se diz
sempre pelo meio. É ali onde o ficcionista fracassa
que pode se abrir, sem que ele saiba disso, seu
verdadeiro caminho.

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