Os rolezinhos devem servir de alerta para um problema: estamos no limite da inclusão social pelo consumo
Volto a comentar os rolezinhos. Eles foram uma surpresa pelo timing e pela dimensão, mas prolongam algumas tendências de nossa sociedade que não deveriam nos surpreender. As manifestações de 2013 foram uma exceção, como as Diretas-Já em 1984 e o impeachment de Collor, em 1992, espaçados momentos em que a cidadania toma o espaço público para defender a coisa pública. O rolezinho é político, mas porque tem um significado político, não porque se expresse em termos políticos. Ele responde a uma nossa tendência, para o mal - e para o bem -, que é carnavalizar.
Na sua melhor versão, é Oswald de Andrade, no "Manifesto Antropófago", de 1929: "A alegria é a prova dos nove". Naquela época, dizia-se que o Brasil era fruto de "três raças tristes", o português, o negro e o indígena. Oswald rompia com esse mito de uma tristeza originária. Contestava a herança jesuítica e religiosa da colônia. Abria lugar para o carnaval, a festa, as paixões alegres.
Rolês mostram que a ideologia do shopping venceu
Já observei aqui que prazer não é felicidade, ao contrário do que se ouve todos os dias. O prazer é breve, instantâneo, intenso; a felicidade é um estado simples e permanente, modesto. Só é feliz quem reduz sua demanda de prazeres. Mas nossa sociedade construiu um sistema em que o prazer é requerido o tempo todo, com sua consequência, apontada pelos filósofos desde a Antiguidade: os prazeres não levam à satisfação. Eles formam uma adição. Uma sociedade que valoriza a este ponto o consumo, seja na Miami de classe média, seja no rolezinho de periferia, tem dificuldades de ir além do prazer. Porque ser feliz é viver ao máximo o que se tem, não é buscar o máximo fora de si. Ser feliz não é depender do consumo. Mais que isso: ser feliz é não depender do consumo.
Mas é o consumo que tem marcado a inclusão social, no Brasil. A inclusão dos últimos anos foi em boa medida um aumento do poder de compra a crédito. Os pobres compram mais - o que é ótimo, porque eles tinham e ainda têm acesso limitado a vários dentre os bens que asseguram o conforto. Mas esse foi o eixo mais marcante da inclusão. Embora a educação esteja melhorando, a dupla do bem - que seriam o mix de educação e cultura, e o de saúde e atividade física - não desperta igual atenção nem gera resultados rápidos. Aliás, se fosse outra a prioridade dos governos petistas, eles se teriam defrontado com uma oposição ainda maior. Aumentar o poder aquisitivo injeta dinheiro na veia da economia. Já melhorar o que chamei dupla do bem exigiria mais investimentos públicos, isto é, mais impostos. Não seria fácil nem, talvez, politicamente possível.
Estamos no limite do que pode ser a inclusão social pelo consumo. Beira o ridículo negar a inclusão social promovida pelo PT. Foi substancial. Mas se deu pelo que nossa sociedade consumista mais valoriza. Melhorar radicalmente as escolas teria exigido mais verbas e protagonismo do poder público. O mesmo vale para a saúde, o transporte e a segurança públicos. O choque com as classes mais ricas teria sido forte, porque a exigência tributária teria aumentado. Basta ver como é difícil a Prefeitura de São Paulo arrecadar o necessário a fim de melhorar um pouco os ônibus, para se ter o tamanho do problema.
Com o consumo, o PT escolheu a via do possível. Dificilmente seus adversários teriam feito melhor. Mas a trilha do consumo significa: a ideologia que ganhou foi a do shopping center. Dizia-se há alguns anos que a ideologia dominante numa sociedade é a ideologia de sua classe dominante. Se for verdade, os rolês mostram que a ideologia da classe média, seu "way of life", seduziram os mais pobres. O que muitos deles querem é estar no mundo da classe média. Não querem romper com ela nem eliminá-la. Querem fazer parte dela, claro que com os ajustes necessários.
Se a classe média não gosta disso, é outra coisa (essa batalha, a "velha classe média" vai perder, e as chances do PSDB estão - como bem entendeu Aécio, mas não os jornalistas favoráveis ao partido - em conseguir ser o partido de todas as classes médias, não só da antiga). Mas a classe média, ou sua maioria consumista, poderia ficar contente. Porque isso significa que os movimentos dos jovens chamados rolezinhos não acreditam que um outro mundo seja possível. O problema é que a inclusão pelo consumo tem um alcance limitado, chega uma hora em que você tem de produzir e não só consumir, e a produção requer hoje competências cada vez maiores, que se chamam educação, cultura, ciência. O engraçado é que também elas podem dar (algum) prazer, mas nossa sociedade, independentemente da classe social, não sabe disso. Prefere o shopping.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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