sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Os estragos profundos das queimaduras‏

Os estragos profundos das queimaduras 
 
Quando as células do tecido mais superficial do corpo morrem, o resto do organismo fica comprometido. A invasão de bactérias e a queda das atividades cardíacas estão entre as complicações que podem se tornar fatais 
 
Isabela de Oliveira
Estado de Minas: 24/01/2014


Brasília – As queimaduras são responsáveis pela morte direta ou indireta de mais de 300 mil pessoas no mundo, e 2,5 mil no Brasil, a cada ano. Na grande maioria dos casos, a região atingida e mais afetada é a pele. As alterações nos tecidos afetam os sistemas fundamentais do corpo, o que pode levar a vítima a sofrer um colapso total. Isso porque o maior órgão do corpo humano funciona como barreira vital contra micróbios nocivos, regulador da temperatura corporal e dos fluidos. Dependendo da gravidade do incidente, as repercussões da lesão no organismo podem ser devastadoras e irreversíveis.

Nos últimos 50 anos, as taxas de mortalidade envolvendo grandes queimados caíram dramaticamente devido ao avanço da medicina. Apesar disso, os grandes queimados, aqueles com mais de 25% do corpo ferido, correm um grande risco de morte se não receberem o tratamento adequado. “As primeiras 48 horas são as mais importantes. A primeira coisa a fazer é repor o líquido e os nutrientes perdidos e fazer a termorregulação”, diz Mário Frattini, chefe da Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte (Hran). É preciso observar o ritmo cardíaco do paciente, já que o sistema circulatório encontra dificuldade em manter a irrigação sanguínea no tecido sem vida.

As infecções são a grande preocupação dos médicos após a estabilização do paciente. Isso porque a destruição da pele representa a ruína da primeira barreira encontrada por micro-organismos externos. Carolina Marçon, da Sociedade Brasileira de Dermatologia, explica que, na epiderme, camada mais superficial da pele, existem as células de Langerhans, que fazem parte do sistema de defesa e participam das reações imunológicas. Ou elas “comem” organismos intrusos, ou alertam outras células sobre invasões de corpos estranhos.

“São estreladas e parecem ter pequenos braços. Quando entram em contato com vírus, bactéria ou substância química, desencadeiam uma reação imunológica que acaba produzindo mais anticorpos”, explica a dermatologista. Quando uma pessoa sofre uma grande queimadura essa proteção se perde, mas até queimaduras de sol , de 1º grau, e exposições longas aos raios UV são capazes de diminuir a atuação dessas células.

Baixa imunidade Outra causa da disfunção imune provocada pela queimadura é a resposta inflamatória grave gerada pela liberação de toxinas que causam inflamação. Elas são produzidas principalmente nos tecidos mortos. Esse processo cria um meio propício para a proliferação de bactérias. O que ocorre é que o oxigênio deixa de circular nos tecidos, que já não têm vida, portanto, não são mais regados com sangue e nutrientes. Sem isso, a chegada de medicamentos e defesas naturais a áreas queimadas fica seriamente comprometida.

“As defesas do paciente ficam tão fracas que até mesmo bactérias normais do corpo dele, como as do intestino, podem virar uma ameaça. Elas podem sair do sistema gastrointestinal e cair na corrente sanguínea, gerando uma infecção séria”, explica Frattini. O estado de fragilidade imunológica somado à perda da barreira protetora da pele e à utilização de instrumentos invasivos, como cateteres, também aumentam os riscos de vida.

Vários estudos consolidam as preocupações dos médicos com esses riscos. Um deles, feito na Turquia e publicado na revista especializada Burns, revelou que a taxa de complicações infecciosas em queimados foi de 28,6%, ou 14,9 infeções a cada mil pacientes. No Brasil, uma pesquisa realizada entre 1993 e 1999 na Unidade de Queimaduras do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo descobriu que 175 (55%) de um total de 320 vítimas desenvolveram infecção, em especial na corrente sanguínea. Outro estudo, desenvolvido no Hospital Universitário Evangélico do Paraná em 2009 e publicado em 2011 na Revista Brasileira de Queimaduras, revelou incidência de 56,7% de infecção nos pacientes com queimaduras graves.

 cuidados Além de receber medicação e uma pomada que vai evitar a infestação de micro-organismos nas feridas, é preciso que os curativos sejam limpos e trocados diariamente. O paciente fica em um leito exclusivo e, dependendo da gravidade da lesão, não divide quarto com outros internados. Os visitantes não devem tocá-lo.

Em alguns casos, o ambiente deve ser fechado, com climatização especial. Além da capacidade de controlar o calor e frio, as vítimas de grandes queimaduras perdem a sensibilidade da pele.

Há ainda um cuidado especial com a alimentação. O acompanhamento com o nutricionista é indispensável porque as respostas metabólicas do grande queimado variam muito ao longo do tratamento. Primeiro, há uma diminuição acentuada da velocidade do metabolismo, com uma redução no débito cardíaco — volume de sangue bombeado pelo coração em um minuto — que varia de 50% a 60%. Após o tratamento com reposição de fluidos, no entanto, a taxa metabólica volta a crescer. “Ele fica desnutrido e gasta muita energia para se recuperar e iniciar a cicatrização. Além disso, passa por muitas cirurgias que necessitam de jejum. Isso implica perda de proteína”, conta Frattini.

Outra medida para evitar as infecções é a cirurgia de remoção de tecidos mortos, que diminui os risco de colonização de micro-organismos na ferida. Praticamente todos os pacientes com lesões graves submetem-se ao procedimento, sucedido por cirurgias de enxerto. Pele de outras partes do corpo que não foram afetadas pelo acidente são removidas para o local da ferida. Sem essas técnicas, a recuperação pode levar muitos meses. Quando aplicadas, permitem que a terapia dure pouco menos de três semanas. As lesões menos graves demoram de uma a três semanas. No entanto, sequelas graves e deformidades acompanham o paciente para a vida toda.

Recuperação dura um ano 

Quando não corre mais riscos e recebe alta, o paciente precisa usar uma malha compressiva para controlar o crescimento da cicatriz, que pode crescer desordenadamente. A malha vai estabilizar e amaciar a pele, desde que seja usada durante pelo menos um ano, as 24 horas do dia. Recomenda-se também o acompanhamento de um fisioterapeuta. O tecido que cresce nas cicatrizes não é como o do resto do corpo, sendo mais duro e fibroso.

Muitas vezes, quando as cicatrizes estão nas juntas, é impossível movimentar-se como antes, pois a pele perde a elasticidade. Então, há a necessidade de readaptação. Se há lesão no rosto, o paciente precisa reaprender a fazer os movimentos faciais, como a mastigação.

O apoio psicológico também integra a lista dos cuidados essenciais. Muitas vezes, além do trauma do acidente e a preocupação com a aparência, há o sentimento de perda. Nas circunstâncias em que as queimaduras acontecem, como os acidentes de carro, as vítimas costumam ser sobreviventes, tendo perdido amigos ou parentes de forma trágica. É possível também que sejam acompanhados por terapeuta ocupacional e assistente social, que o instruirá sobre os benefícios sociais a que têm direito.

“Uma grande equipe é mobilizada para o tratamento e a reinserção social. Não apenas os pacientes, mas a equipe também precisa ficar fortalecida. Por isso conta com a assistência psicológica. Também nos choca ver uma criança pequena gravemente queimada”, completa Mário Frattini, chefe da Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte (Hran). (IO) 

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