A alma do blues
Autobiografia de B. B King mostra como a música dos campos de algodão do Mississippi se tornou universal. Aos 88 anos, o artista é ícone da arte popular
Ângela Faria
Estado de Minas: 01/02/2014
B. B King e sua Lucille encantam várias gerações de amantes da boa música |
B. B King é uma lenda – e não há uma gota de clichê nisso. Admirado por John Lennon, Miles Davis, Eric Clapton e Johnny Winter, esse bluesman nascido em 1925, no Delta do Mississippi, trabalhou duro para defender a sua música. Testemunha (e, às vezes, vítima) das transformações do showbizz a partir da década de 1940, o guitarrista, compositor e cantor não apenas fez história. Ele é história.
Lançada em 1996, a autobiografia B. B King – Uma vida de blues (Generale) chega agora ao Brasil. O coautor, David Ritz, escreveu também sobre Marvin Gaye, Smokey Robinson, Etta James e Ray Charles. Logo nas primeiras páginas, o astro avisa: blues não é o canto da tragédia. Discípulo de Blind Lemon e de Lonnie Johnson, ele vê esperança e emoção na música inventada na roça norte-americana.
Desde garotinho, Riley colheu algodão no Sul dos EUA. Depois, dirigiu trator, fez carreira no rádio como DJ, montou bandas e sofreu dezenas de acidentes ao cruzar seu país durante turnês. Teve 15 filhos com mulheres diferentes. Era criança quando perdeu a mãe e a avó. Dos 10 aos 13, viveu sozinho na cabana cedida por um compreensivo fazendeiro. Aquele patrão foi raríssima exceção entre racistas na terra da Ku Klux Klan. Aos 12, comprou seu primeiro violão por US$ 15.
Rua O tratorista e agricultor humilde lutou para conquistar espaço nas rádios de sua região. Tocando nas ruas, aprendeu a primeira lição de marketing de sua vida: as canções da vida real, “em que você sente a dor e o ardor entre um homem e uma mulher”, têm valor afetivo – e financeiro.
Rapazinho, o DJ se alternava entre os microfones da emissora WDIA e a lida no campo. Um jingle, composto para o Pepticon, chamou a atenção para seu talento. Mas era preciso mais: inventar um estilo. E ele veio, depois de o jovem se encantar com sons havaianos e com o pedal steel. “Ao curvar as cordas, ao treinar minha mão – elas são bem gordas e grandes –, conseguia obter algo que se aproximava de um vibrato vocal. Conseguia sustentar as notas. Queria conectar minha guitarra às emoções humanas. Ao usar o feedback do meu amplificador e do instrumento, experimentei sons que expressavam meus sentimentos”, resume ele.
Demorou um bocado a metamorfose de Ripley. Inicialmente conhecido como o DJ Blues Boy da Beale Street, depois ele se chamou Bee Bee, e, finalmente, B. B King. Ouvia-se muita música nos EUA do pós-guerra, mas o “caipira emergente” não queria ser bluesman-clichê: aquele sujeito tosco de roupa rasgada, copo de bebida ao lado e orgulhoso de dar bordoadas na mulher.
Lucille Desde o início, King defendeu o blues como música tão nobre quanto a ópera e o jazz. Lucille, a eterna parceira, surgiu em 1949. Um incêndio pôs fim ao baile na pequena cidade de Twist. Chamuscado, o guitarrista percebeu que abandonara o ganha-pão lá dentro. Atravessou as chamas, queimou-se e resgatou a “amiga”. Dali a pouco, descobria a origem do fogaréu: a briga de dois rapazes por causa de uma tal de Lucille. Desde então, cerca de duas dezenas de guitarras batizadas de Lucille dividem o teto com ele.
Em 1952, aos 26 anos, gravou o primeiro hit, Three o’clock blues, que fez dele “nome nacional num mundo exclusivo de negros”, como ressalta em sua autobiografia. “Não vendia para os brancos nem tocava para eles. Isso só ocorreria dali a 20 anos.” Workaholic, em quatro décadas, calcula ter feito 330 shows por ano. Gostava de jogar, perdeu fortunas. Conquistador, teve alguns casamentos e muitas mulheres. Pai ausente, elogia todas elas.
B. B King experimentou altos e baixos, viu nascer fenômenos como Elvis Presley e Ray Charles, aprendeu a lidar com empresários, contratos e gravadoras. Estava lá quando estouraram o rock, o soul e a Motown. Para ele, o blues está no DNA de tudo isso, embora muitos o considerem “menor”. Também pensavam assim Mick Jagger, Keith Richards, Johnny Winter, Eric Clapton e Bob Dylan – rapazes brancos que revolucionaram a cultura do século 20. Aliás, certa vez, os hippies fizeram B.B King chorar, em São Francisco. Ao ouvir Rock me baby, Sweet litle angel, You upset me baby e How blue can you get durante um show, a plateia de cabeludos urrou de alegria. King e Lucille tiveram de tocar por quase três horas.
O veterano bluesman gostava dos jovens colegas Jimi Hendrix, Steve Ray Vaughan e Jeff Beck. Só não achou graça quando o The Who inventou a moda de destruir guitarras no palco. “Cara, eu tinha arrepios só de pensar em machucar minha Lucille”, espantou-se ele. Em 1970, King estava de volta às paradas com The thrill is gone. John Lennon adorava aquela canção. A definitiva consagração mundial viria no fim da década de 1980: aos 62 anos, o carismático senhor encantaria novamente os jovens ao dividir com Bono Vox a matadora When love comes to town, no disco Rattle and hum, lançado pela banda irlandesa U2.
Hoje, o canto dos campos de algodão é tão cultuado quanto a ópera e o jazz. “Vi o blues viajar das estradas rurais do Mississippi para praticamente todos os pontos do planeta. Roqueiros, rappers e cantores de soul vêm dele. O blues é o avô que roga por todas as suas crianças”, comemora B. B King.
B. B KING – UMA VIDA DE BLUES
• De B. B King e David Ritz
• Editora Generale
• 226 páginas, R$ 54,90
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