Destinos cruzados
O escritor português Gonçalo M. Tavares lança o romance Matteo perdeu o emprego, que mostra o desencanto de personagens de um tempo marcado pela ausência de horizontes
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 15/02/2014
Em seu novo livro, Gonçalo M. Tavares monta um jogo em que os personagens passam para a frente cacos de um futuro sem esperança |
Uma das mais celebradas vozes da literatura contemporânea, traduzido para mais de 30 línguas e vencedor de prêmios importantes como o Portugal Telecom e o José Saramago, o escritor Gonçalo M. Tavares está lançando o intrigante Mateeo perdeu o emprego. A exemplo de romances anteriores, a trama desenvolvida é um convite à reflexão, um nó bem dado na cabeça do leitor, que tem de prestar atenção para não se perder nas fantásticas histórias vividas pelos personagens. Trata-se, na realidade, de um instigante e bem urdido quebra-cabeças, que foi montado pelo gênio criador de Tavares. Na primeira parte de Matteo perdeu o emprego, são oferecidas ao leitor 25 histórias curtas, com uma se ligando à outra, e com cada personagem passando ao seguinte uma espécie de testemunho dos seus feitos, que quase sempre beiram o fantástico.
Um pequeno elo, aparentemente simples, mas apenas aparente, liga um fato ao outro, num encadeamento perfeito cujo sentido só se revela ao fim. Os personagens têm nomes judaicos, Aaronson, Cohen, Gottlieb, Greenberg, retirados de um ensaio fotográfico feito por Daniel Blaufuks. Já a segunda parte é na realidade um posfácio em forma de pequenos ensaios, também escrito por Gonçalo Tavares, que volta aos temas iniciais, em forma circular, cuidadosamente ordenado.
Nascido em Luanda, em Angola, em 1970, Gonçalo M. Tavares, em depoimento ao Estado de Minas, diz que suas histórias podem vir de notas feitas em viagens ou de imagens que ficaram em sua cabeça. No caso de Matteo perdeu o emprego, não foi diferente: “A ideia surgiu a partir da imagem de alguém que está tão desesperado por estar desempregado, que aceita fazer um trabalho que implica certa humilhação, além de uma certa perversidade sexual”, revela o romancista. Leia a seguir os principais momentos da conversa com o romancista.
Arte e vida
“A literatura, a meu ver, é muito diferente do mundo real. Não me atrai uma reprodução exata da realidade através da literatura. Não é estimulante ler um diálogo que seja semelhante a um diálogo travado em um café por duas pessoas. A literatura deve nos dar alguma coisa sobre a realidade, mas não deve ser uma cópia da mesma, pois sempre será uma cópia pior. De qualquer maneira, a realidade, para mim, funciona como um ponto de partida. Dessa forma, estar num café, observar o que se passa por lá, conversar e depois transformar tudo isso em literatura, é uma coisa estimulante. A literatura serve ainda para muitas outras coisas, como contribuir para aumentar a lucidez no mundo. Na minha visão, sem ela, a lucidez do mundo seria menor. Não me agrada a literatura somente como um passatempo. Ler deve ser sempre um prazer, mas não deve ser um prazer superficial, mas de profundidade, que ajude as pessoas a refletir de forma mais lúcida, a melhorar a si próprias e também ao mundo que as rodeia.”
Ofício
“O escritor deve ter os pés no momento presente, um olho no passado e o outro em uma espécie de desejo, para poder fazer alguma coisa distinta. Tento sempre marcar uma certa distância em relação aos acontecimentos. Tenho uma tendência em não me deixar perturbar pelo que está acontecendo à minha volta, sobretudo as coisas negativas. Não é fácil, mas tento me proteger das coisas ruins. Para se conseguir escrever, é preciso uma espécie de paragem e movimento. Desta forma, ver o que se passa no mundo, estar atento às coisas que nos rodeiam, para depois transformá-las em palavras, é importante. Por outro lado, para conseguir criar alguma coisa que valha a pena, é preciso ter disciplina, levantar cedo, começar a trabalhar logo, seguir um método. Tento ficar sempre duas, três horas por dia isolado de tudo, só para me dedicar à literatura. Tenho uma casa onde não existe internet, televisão, telefone, quase nada que se refira ao mundo moderno, pois a imaginação não pode se desenvolver se estivermos ao mesmo tempo ligados a essas coisas todas. Quando estou nessa casa, é como se estivesse em algum lugar do século 18, com total tranquilidade para desenvolver minha literatura, poder imaginar as minhas histórias.”
As viagens
“A pessoa pode viajar com os pés e estar em muitos diferentes lugares, como costuma acontecer comigo. Mas também pode viajar com a imaginação, como também faço. Algumas das viagens que realizo mundo afora têm me marcado muito. Estive há algum tempo, por exemplo, na Cidade do México e fiquei fascinado com aquela mistura toda entre o arcaico e o moderno. Lembro-me que entrei em uma sorveteria e naquele pequeno espaço – além dos sorvetes e picolés – existia um oratório, uma espécie de pequena capela, cheia de imagens e velas acesas, onde duas velhas rezavam. Era uma espécie de mistura entre o tempo, as várias épocas: a sensação de estarmos no século 21, tomando sorvete, e ao mesmo tempo, no século 10, vendo aquela cena das duas senhoras orando. Tudo isso é muito marcante na Cidade do México, que é um lugar muito especial. Outra coisa que as viagens nos ensinam é que as condições, os locais onde as pessoas crescem, ajudam muito a definir o comportamento das mesmas, suas personalidades. O ser humano, na essência, é o mesmo em todas as partes, com seus medos e desejos, mas diferente em relação às circunstâncias e aos lugares onde foi criado e vive.”
O Brasil
“A minha relação com o Brasil tem a ver de imediato com a língua. O fato de falarmos o português faz com que o Brasil, para mim, seja um espaço familiar, pois a língua é uma espécie de canção maternal, que nos protege. Portanto, quando estou no Brasil é como se estivesse em Portugal, na minha própria casa. Quando estou em um lugar onde a língua me é estranha, como em algum país do Oriente, por exemplo, a sensação de salvação é, muitas vezes, ouvir alguém falar alguma coisa em português. Algo que nos seja familiar. Dá uma sensação de alívio, funciona como uma âncora, de salvação material. Portanto, a minha relação com o Brasil tem tudo a ver com isso. Em abril ou maio estarei aí novamente.”
Matteo, o romance
“É difícil dizer como surgem as minhas histórias. Às vezes elas costumam nascer de uma mistura entre a imaginação e a realidade. Cada livro que escrevo é muito diferente um do outro, e ainda bem. Às vezes a história surge a partir de algumas notas que faço, muitas delas em viagens. Outras vezes a partir de imagens, das coisas que observo e penso. Matteo perdeu o emprego, por exemplo, surgiu da imagem de alguém que está tão desesperado por estar desempregado há tanto tempo, que aceita fazer um trabalho que, se por um lado implica alguma humilhação, por outro implica também uma certa perversidade sexual. O trabalho de Matteo, no livro, é conduzir, abrir as portas, levar o guarda-chuvas de uma mulher que não tem os braços. De certa forma, ele se oferece para ser os braços dessa mulher. Depois, a história cresce para uma lógica mais perversa. Mas o ponto de partida foi essa imagem.”
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