domingo, 2 de fevereiro de 2014

Gente que faz - Ana Clara Brant

Gente que faz

Pontos de cultura, iniciativa criada durante a gestão de Gilberto Gil no MinC, já são mais de 170 em Minas. Trabalho mostra bons resultados, mas burocracia ainda é problema


Ana Clara Brant
Estado de Minas: 02/02/2014


A estudante Fernanda Carvalho começou a frequentar o ponto de cultura como participante de oficinas e hoje é atriz e monitora (Fotos: Ramon Lisboa/EM/D. A Press  )
A estudante Fernanda Carvalho começou a frequentar o ponto de cultura como participante de oficinas e hoje é atriz e monitora


Na entrada do projeto Casa do Beco, no Morro do Papagaio/Aglomerado Santa Lúcia, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, está afixada uma placa que é uma espécie de prêmio: “Ponto de cultura – Um espaço cultural a serviço da comunidade”. A associação promove desde 2003 o desenvolvimento humano e a transformação social, utilizando como ferramentas atividades artísticas, especialmente o teatro. Há três anos, foi uma das selecionadas para fazer parte desse projeto do Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura (MinC).

“A partir do momento que você vira ponto de cultura, é uma prova de que tem um trabalho diferenciado. Não deixa de ser um título, uma chancela. Querendo ou não, abre portas, porque você passa a ter mais credibilidade. Antes de ponto de cultura, a Casa do Beco era um grupo de teatro. Depois, os benefícios que ele trouxe nos permitiram ser um espaço de verdade para que a comunidade usufruísse”, salienta o criador e coordenador da instituição, Nil César.

O ponto de cultura é a ação prioritária do Programa Cultura Viva, que surgiu em 2004, na gestão do então ministro Gilberto Gil. Na época, ele apelidou a iniciativa de “do-in antropológico, que massageia pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país”. O projeto é referência de uma rede horizontal de articulação, recepção e disseminação de iniciativas culturais. Como um parceiro na relação entre Estado e sociedade, o ponto agrega agentes culturais que articulam e impulsionam um conjunto de ações em suas comunidades.

Não modelo único, seja de instalações físicas, programação ou atividades. Um aspecto comum a todos os espaços é a ampliação do conceito de cultura, abrangendo várias áreas, e a gestão compartilhada entre poder público e a sociedade civil. O ponto de cultura agrega todas as formas de expressão, como música, poesia, literatura, artes plásticas, visuais e dança. São cerca de 3,6 mil em todo o país, desde aldeias indígenas e quilombos até sedes de grupos de experimentação em linguagens artísticas contemporâneas.

Nas gestões de Gilberto Gil e de seu sucessor Juca Ferreira, os pontos funcionaram a todo o vapor. A iniciativa deu uma esfriada na época em que Ana de Hollanda e Martha Suplicy assumiram a pasta, de acordo com participantes dos pontos de cultura. Com isso, houve algumas modificações no projeto, entre elas a descentralização da gestão, que passou a ser compartilhada entre o governo federal, estados e municípios.

Todos os pontos são escolhidos a partir de editais e o último deles foi publicado em 2009. Na época, só em Minas Gerais, foram selecionados 100. Há a expectativa de que nova convocação pública seja feita em abril, como lembra Cesária Macedo, representante do MinC em Minas. “De forma alguma esse programa está parado. Ele ficou dois anos sendo avaliado, redesenhado, e há a possibilidade de ele ser até ampliado. O novo edital vai abrir oportunidades para quem quiser renovar ou mesmo se tornar um novo ponto de cultura”, assegura.

Palco da vida


Nil César, coordenador da Casa do Beco
Nil César, coordenador da Casa do Beco


A Casa do Beco, de Nil César, colhe os frutos de ter se tornado um ponto de cultura. Com os recursos, ele conseguiu comprar equipamento de som, luz, mobiliário e, principalmente, ampliar a programação das oficinas e investir em projetos internos e na produção de espetáculos. Sem falar na criação de uma rede de comunicação entre pontos do Brasil inteiro. “Essa troca de informações e experiências é fantástica. Você está com um problema ou quer tirar uma dúvida, manda para o nosso mailing e na mesma hora alguém te retorna. Facilita muito quando fazemos turnês com o grupo, já que você chega a uma cidade e um ponto de cultura de lá ajuda com equipamento, estrutura. Isso até otimiza recursos. Contato é tudo”, defende Nil.

Uma das beneficiárias da iniciativa é a estudante e atriz Fernanda Carvalho, de 19 anos. Moradora do Conjunto Santa Maria, próximo ao Hospital Luxemburgo, na Região Centro-Sul, ela se tornou uma multiplicadora do processo iniciado por Nil César. Fernanda sempre se interessou por teatro e, quando se deparou com uma das oficinas oferecidas pelo projeto em sua escola, descobriu ali sua verdadeira vocação.

Ela se destacou tanto que passou a participar de outras oficinas da Casa do Beco, encenou peças e hoje o papel se inverteu: foi convidada para ser uma das monitoras da iniciativa. “Tento conciliar minha vida de estudante de ciências contábeis com as aulas e o teatro. Mas a arte é a grande paixão, apesar de eu saber da instabilidade do setor. Fiquei muito surpresa quando fui inserida no projeto e isso é o bacana. Eles investem bastante em quem tem potencial”, afirma.

A atriz revela que o ingresso na turma dos 100 atuais pontos de cultura de Minas Gerais fez com que a Casa do Beco se consolidasse de verdade. É visível, garante Fernanda, a evolução no número de oficinas e espetáculos. “Quando iniciei, era mais difícil. Depois que virou ponto, as coisas começaram a mudar. Tudo o que vivi e vivo aqui foi fundamental para me direcionar na conquista do meu grande sonho. Fiz cursos, ganhei bolsa da Casa do Beco e não poderia estar mais feliz”, comemora.

PONTO E PONTO

3.663
pontos de cultura no Brasil

178
pontos conveniados em Minas

96
municípios mineiros envolvidos

22
pontos em Belo Horizonte

2009
ano de publicação do último edital


Informações: www2.cultura.gov.br/culturaviva/ponto-de-cultura/
Fonte: Ministério da Cultura



Cidadania é uma arte 

Projetos que se integraram aos pontos de cultura vão da estética experimental ao apoio a pessoas com limitações. Participantes relatam experiências que mudaram suas vidas

Ana Clara Brant

O cineasta Helder Quiroga e o músico Vítor Santana, da ONG Contato, durante oficina de cerâmica. Entidade foi pioneira em Belo Horizonte (Juarez Rodrigues/EM/D.A Press  )
O cineasta Helder Quiroga e o músico Vítor Santana, da ONG Contato, durante oficina de cerâmica. Entidade foi pioneira em Belo Horizonte

A geração inaugural dos pontos de cultura conseguiu algo inovador, que foi receber diretamente, sem intermediários, recursos do governo federal. A ONG Contato, que funciona no Bairro da Serra, em BH, foi uma das primeiras a serem contempladas. Os coordenadores da entidade, o músico Vítor Santana e o cineasta e produtor Helder Quiroga, enumeram as vantagens deste ingresso, como “entrar no mailing do Ministério da Cultura” e, a partir daí, passar a receber informações relevantes, como editais, encontros, reuniões. Por meio do dinheiro repassado, é possível também concretizar projetos e melhorar a infraestrutura da organização.

“A gente se aproximou de outras entidades, do próprio ministério, e conseguimos trazer gente de fora e do Brasil inteiro para Belo Horizonte. Promovemos uma série de oficinas de audiovisual, música e cerâmica. A gente chegou a ganhar o Prêmio Cultura Viva como um dos pontos de cultura de maior destaque. E mesmo que institucionalmente não sejamos mais um ponto, ficamos como referência nesse sentido. Ainda participamos de encontros, coordenamos eventos e, apesar de não receber mais recursos, nos consideramos um eterno ponto de cultura. Esse título está muito intricado na nossa identidade”, comenta Vítor.

Na opinião de Helder, o grande mérito do Cultura Viva, e um dos seus eixos principais, os pontos de cultura, foi ter reconhecido iniciativas que já existiam no setor cultural. Ele salienta que o modelo foi tão vitorioso que acabou sendo adotado por outros países. “Construir tijolos é importante, no entanto, mais importante ainda é apoiar o que já está construído, pronto, e incentivar o trabalho de quem já desenvolvia uma produção artística. Além  de ter criado um rede no Brasil inteiro, articulando movimentos sociais. Ao longo dos anos, o ponto de cultura se tornou uma das maiores chancelas dessa política cultural do governo e reinventou a maneira de se fazer cultura no Brasil. Tanto é que o modelo foi exportado para Argentina, Peru e outros países”, diz.


Para ampliar horizontes


Na Associação Crepúsculo são oferecidas atividades de música, teatro e dança, além de acompanhamento clínico e pedagógico (Cláudio Márcio/Divulgação  )
Na Associação Crepúsculo são oferecidas atividades de música, teatro e dança, além de acompanhamento clínico e pedagógico

Outra instituição que ganhou bastante ao se transformar em ponto de cultura foi a Associação Crepúsculo, cujo projeto Diversidade em Ponto proporcionou a continuidade e a ampliação das atividades artísticas e culturais desenvolvidas, como oficinas inclusivas de artes plásticas, contação de histórias, musicalização, dança e teatro. Diretora artística da entidade, a bailarina e terapeuta ocupacional Luciane Kattaoui conta que o projeto foi criado com o intuito de atender a todo tipo de deficiência ou limitação, seja física, cognitiva ou mental. Ela percebeu que os diversos tipos de linguagem poderiam auxiliar seu público. “Às vezes a pessoa chega aqui para fazer um curso de teatro ou dança, mas precisa de fonoaudiologia, alfabetização, acompanhamento mais clínico e pedagógico. E isso tudo é ofertado aqui”, diz.

Desde que se transformaram em ponto de cultura, mais pessoas passaram a ser atendidas nos vários programas, já que os recursos bancam os professores e o material utilizado nas oficinas do período vespertino. “Ser ponto de cultura nos proporcionou oferecer cinco oficinas gratuitas, com 20 vagas cada. Os recursos ajudaram a nos equipar, porque conseguimos adquirir livros, máquinas fotográficas, colchonetes e instrumentos musicais. Para uma instituição como a nossa, é difícil bancar tudo isso. Nesse período de três anos que somos auxiliados pelo programa, a gente vem conseguindo se manter, para depois poder andar com as próprias pernas”, ressalta.

Luciane garante que nunca teve problemas com atraso no repasse da verba e que, frequentemente, fiscais do programa fazem monitoramento e diagnóstico para conferir se tudo está seguindo bem. “Valorizo demais essa ação. Não tenho do que me queixar”, reitera.

Lucas Henrique de Oliveira, de 26 anos, é outra pessoa depois que ingressou nas oficinas do Crepúsculo. Sua evolução e alegria são evidentes, como destaca a mãe, Jacqueline de Oliveira. O rapaz tem dificuldades de cognição e de aprendizado, mas os médicos nunca conseguiram dar um diagnóstico real. Lucas se adaptou tão bem às atividades que hoje participa dos cursos de culinária, artes, dança e descobriu um novo talento, a massoterapia.

“Quando ele entrou na associação, eu não tinha condições de pagar o período todo, e,  como as oficinas da tarde são de graça, ele fica lá das 13h até as 17h e adora. Você não imagina como ele evoluiu e está satisfeito. O Crepúsculo ajudou muito meu filho e o mais interessante é que ele saiu da situação de ajudado para a de ajudante. Ele auxilia os cadeirantes, aprendeu a linguagem dos sinais e se comunica com os surdos e mudos. Hoje, Lucas pode fazer pelo outro o que fizeram com ele e pode até ser que, com o passar do tempo, ele se torne um dos monitores também”, celebra Jacqueline.

Burocracia é a principal queixa


Os pontos de cultura também têm seus entraves. E a grande reclamação das instituições é a burocracia excessiva. A diretora da Superintendência de Interiorização e Ação Cultural da Secretaria de Estado de Cultura de Minas, responsável pela gestão dos pontos de cultura de Minas, Manuella Machado, explica que a primeira leva dos pontos, em 2004, era conveniada diretamente com o Ministério da Cultura. Porém, muitos não conseguiram lidar com toda a documentação e burocracia, principalmente, na hora de prestar contas. “A coisa é muito abrangente, porque os pontos reúnem quilombolas, indígenas, ONGs e gente que não sabe mexer com toda essa documentação, fazer cotação de preços. Muitos acabaram ficando inadimplentes. Não por má-fé, mas por desconhecimento mesmo”, esclarece.

A Lei 8.666 (das licitações) regula todo o processo. E como brinca Nil César, da Casa do Beco, não é à toa que ela leva o número da besta, 666, porque é um verdadeiro inferno. “Ser ponto de cultura também dá dor de cabeça. E a lei vale tanto para uma tribo de índios, que nem nota fiscal consegue para adquirir material, como para uma ONG que tem um CNPJ. O processo burocrático acaba engessando o processo ideológico”, reclama.

Minas acabou se tornando referência e exemplo no assunto, porque aqui, como salienta Manuella Machado, o governo estadual contratou uma empresa especializada para prestar assessoria aos pontos em questões fiscais e burocráticas. “Foram oferecidos cursos, advogados, oficinas de gestão cultural e empreendedorismo, porque muitas entidades não sabiam nem o que comprar. Por isso, nosso resultado foi muito bom e praticamente não tivemos inadimplência”, constata.

Todos os pontos de cultura recebem R$ 180 mil, num período de três anos, sendo esse valor dividido em três parcelas. No caso dos pontos de cultura de Minas, parte da verba é do governo federal e outra do governo do estado. A maioria dos representantes de associações defendem a tese do dinheiro vir em forma de prêmio, e não de convênio, que seria uma maneira de desburocratizar o processo.

A representante do MinC no estado, Cesária Macedo, diz que o governo federal sempre esteve aberto ao diálogo, que sabe da demanda dos pontos e acredita que ela deve ser levada em consideração. “O programa é muito debatido e está sendo discutida uma maneira de facilitar o repasse dos recursos para potencializar suas ações. A intenção é desburocratizar”, assegura.

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