sábado, 22 de fevereiro de 2014

Ninguém é santo - João Paulo‏

Ninguém é santo 
 
João Paulo
Estado de Minas: 22/02/2014


O romancista Luiz Biajoni é autor de Elvis & Madona, escrito a partir do filme de Marcelo Lattiffe (Karen Bassetti/Divulgação)
O romancista Luiz Biajoni é autor de Elvis & Madona, escrito a partir do filme de Marcelo Lattiffe

Acomédia mundana, de Luiz Biajoni, tem um título com um quê de nobreza literária. Que logo em sequência, no subtítulo, desmancha qualquer expectativa de elegância: Três novelas sacanas. Mas a alusão a Balzac tem até um certo sentido, já que o autor faz a crônica social de seu tempo, lança personagens aqui que reaparecem acolá, tem uma entrega determinada ao melodrama e não perdoa nenhuma instituição, da Igreja à imprensa. Pura comédia humana. Mas isso é só o começo. Aos poucos, o velho Balzac é substituído por um narrador meio Nelson Rodrigues meio Rubem Fonseca, um pouco Nick Hornby e um tanto de Bukowski. Mas com voz própria.

O livro reúne três histórias: uma já publicada por uma pequena editora, outra circulando com sucesso como e-book e uma inédita. Os títulos percorrem a geografia corporal do sexo, sem meias palavras: “Sexo anal – Uma novela marrom”, “Buceta – Uma novela cor-de-rosa” e “Boquete – Uma novela vermelha”. O estilo de Biajoni é direto, quase sem adjetivos, com diálogos tirados da vida comum, conduzidos com o ouvido. Apesar do aparente descuido, que dá ideia de um longo improviso fácil, a estrutura é firme, o suspense mantido o tempo todo e o leitor empurrado pela curiosidade e prazer da leitura. E tem, ainda, muito humor e sensualidade. Não podia ser melhor.

Literatura erótica – ou de sacanagem, como é o caso de Biajoni – é talvez a mais difícil entre as formas canônicas de ficção. Há os que se exibem, os que naturalizam, os que fazem enjoados tratados de patologia ou catálogo de perversões, e aqueles que inventam demais. No caso de A comédia mundana, a opção foi outra: casar erotismo com a já conhecida fluidez das histórias policiais. Assim, o leitor é seduzido pelo sexo, enquanto acompanha uma narrativa de crime, com suas reviravoltas e mistérios, o que dá algum distanciamento, mas não deixa de excitar. Biajoni coloca ainda tudo para funcionar no cenário de uma cidade de médio porte, o que permite dar urbanidade e provincianismo na mesma pegada.

Cada novela – adiantar o enredo pode tirar a graça da leitura, já que a história é uma sucessão de fatos sobre fatos, sem tempo para reflexões ou teorias – tem seu enredo singular, mas costura alguns elementos comuns: a sexualidade heterodoxa, as perversões, a culpa, o crime, a corrupção sem barreiras entre a vida pública e privada. Os personagens são pessoas comuns e tipos verossímeis de canalhas, como pastores que enganam seu rebanho, empresários que subornam a polícia, donos de jornal que se vendem barato e jornalistas policiais carreiristas, que batem em presos para ficar amigos de delegados. Tudo começa com sexo e suas variantes para logo se misturar com o jogo de poder e o crime. Traições, promiscuidade, taras, humilhações, violência e culpa são os ingredientes mais fortes do coquetel sexual dos personagens. Ninguém é santo nas novelas de Biajoni. Nem o leitor, que se pega se divertindo com tanta sacanagem.

Além do sexo
Os títulos de cada novela não são apenas estações possíveis do desejo e de suas derivações. Há uma intenção marota em tudo, certa erudição da pouca vergonha. O autor sabe que o caráter anal vai além do sexo e se manifesta em vários tipos de comportamento, além de testar as teorias masculinas sobre o prazer, a masculinidade em si e a fidelidade. No caso da genitalidade feminina, a decisão do personagem em mudar de sexo é uma atitude que desafia todo o falso equilíbrio social. As três novelas começam com o anúncio de uma cirurgia, como se os personagens precisassem corrigir o corpo para viver uma vida melhor (o mesmo se observa em outro livro do autor, Elvis & Madona). Biologia, no caso identidade sexual, não chega nunca a ser destino, mas apenas provocação em busca de melhores arranjos.

Não ha espaço para pieguice nas histórias de Biajoni, por vários motivos. Em primeiro lugar, seus personagens são gente comum, que trabalha e toma cerveja no botequim, mas que deseja. Em seguida, pelo fato de ele não defender qualquer ideia ou visão de mundo, uma espécie de ceticismo sem cinismo. E ainda pelo fato de narrar sem enganar o leitor, mas também sem deixar de surpreendê-lo nas horas certas. Os desfechos são sempre violentos, exagerados e um pouco redentores. Um jeito de equilibrar a excitação do enredo com o inevitável cansaço da trama movimentada. Pós-coito, o homem é um animal triste.

Para quem assistiu ao filme Elvis e Madona, vale a pena procurar o livro Elvis & Madona – Uma novela lilás (Língua Geral). Ao bagunçar todas as possíveis certezas em matéria de amor e gênero, com a história de uma paixão improvável entre um travesti e uma lésbica, Biajoni parece ter se vingado de todos os diretores que mudam os livros para fazer seus filmes. Como o filme veio primeiro, ele inventou personagens e mudou o final. Ficou tão bom quanto o filme de Marcelo Lattiffe.

Luiz Biajoni nasceu e mora em Americana, interior de São Paulo. É jornalista e autor, além dos já citados, de Virginia Berlim – Uma experiência. Para ilustrar a capa de sua A comédia mundana ele convidou o artista Benício da Fonseca, conhecido pelos cartazes de filmes da época da pornochanchada e pela capa de livros populares românticos e de aventura. O que um dia foi pulp hoje é pop.


A COMÉDIA MUNDANA – TRÊS NOVELAS POLICIAIS SACANAS

• De Luiz Biajoni
• Editora Língua Geral
• 480 páginas, R$ 45

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