sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sonhos e palavras [Helder Macedo] - André di Bernardi Batista Mendes

Sonhos e palavras
 
Tão longo amor tão curta a vida mostra o talento e a sensibilidade d o escritor português Helder Macedo


André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 22/02/2014


Helder Macedo tira poesia das palavras e situações, em trama envolta em muitos mistérios       (Luísa Ferreira/Divulgação)
Helder Macedo tira poesia das palavras e situações, em trama envolta em muitos mistérios


Com título retirado de um soneto de Luís de Camões, o romancista e crítico literário português Helder Macedo acaba de publicar Tão longo amor tão curta a vida. Trata-se de um thriller psicológico que apresenta ao leitor um labirinto de histórias, enredos inacabados, o que empresta ao texto sabores especiais. Macedo fala da fugacidade da vida a partir do périplo de um diplomata inventor de mapas e uma cantora que perdeu a voz, na Berlim pós-queda do muro, e encanta sem perder uma correta e certeira dimensão política, uma de suas marcas registradas.

Um escritor português, que vive em Londres, é o narrador da história. Certa noite, um antigo conhecido bate à porta da casa dele, com uma história cheia de labirintos, claros e escuros. Diplomata especialista em países em conflito, Victor Marques da Costa alega ter sido vítima de um sequestro, e tenta convencer o amigo escritor de que corre risco de vida. Tudo torna-se estranho, contundente. Confuso, com a camisa manchada de sangue, ele narra para o dono da casa uma trama repleta de curvas e espinhos.

O escritor, assim, ouve muitas histórias e revela ao leitor a biografia do diplomata que, desde jovem, sonhava em criar um novo mundo mudando a posição dos países em diversos mapas. A oportunidade de Victor presenciar uma mudança no mapa geológico do mundo surge quando ele vai trabalhar na embaixada portuguesa em Berlim, às vésperas da virada política que reuniria novamente as duas Alemanhas.

Entra neste contexto uma profunda experiência amorosa, ornada pelo afeto. Entram em cena Otto, funcionário da embaixada, e a bela e misteriosa Lenia Nachtigal, alemã do lado oriental que se revelaria uma grande cantora de ópera. Victor, contudo, acaba sendo abandonado por esta bela figura. Helder monta uma teia de acontecimentos que prendem e atiçam a imaginação de seus possíveis leitores. Onde estaria Lenia? O que é verdade? O que é mentira? Helder Macedo brinca com as palavras. O que é fato, o que é invenção?

Porque a literatura é isso, puro desconcerto. Helder trabalha, atua neste inventar de mapas, bússolas, céus inusitados. Para povoar, os personagens nascem com asas para o mais dos sonhos. E um romance escrito por um poeta é sempre diferente. Helder Macedo é, pois sim, poeta, e deixa claro este fato ao deixar marcas de neblina entre as sutilezas de sua prosa. "O fato é que sempre tive mais dúvidas do que certezas." Eis a primeira frase, está ali uma espécie de chave. Não vejo maneira melhor e mais promissora para se começar um livro, para se começar a contar uma história.

Verso e prosa
Os melhores poemas não têm fim, são, por natureza, inacabados, eles sofrem desse mal luminoso. Existem sombras que acompanham para sempre os melhores versos. O mesmo, mas com outras doses e medidas, acontece no bom romance. Eles podem, e devem, ampliar esse estado inusitado. Helder Macedo prefere, pois, mais sugerir que afirmar, ele prefere estimular, insinuando. Tão longo amor tão curta a vida é um romance que mostra uma estrada sinuosa. As coisas surgem porque existe a dúvida, o desamparo. As versões, na maioria das vezes, são muito mais interessantes do que os fatos. A força do que poderia ter acontecido muda o rumo dos ventos. Em larga medida, pássaros, coisas de sonho e memória, invenção e descalabro, no que este signo tem de desorganização e caos.

Certos personagens surgem de ilhas inexistentes em termos de mapas. Todo livro é uma espécie de caverna, mas não aquela de Platão. Todo livro é um recinto que remete, que promete uma espécie de sol absurdo. Todo enredo, toda trama é feita de artifícios enganosos, repletos de sutilezas. É preciso fogo e pavio para incendiar o texto. O livro de Helder Macedo queima, desenvolto em brumas de sonho.

Helder, por isso, apimenta o seu caldeirão de ideias, com acidez e uma lucidez essencial. “Em todo caso as condições de vida da maioria da população melhoraram durante uns tempos, isso era justo reconhecer, os governos passaram a ser eleitos e deseleitos como lá fora, a corrupção democratizou-se, a ineficiência normalizou-se, houve quem se alegrasse, houve quem se inquietasse, e também houve aquele comentário de um antigo governante em confortável exílio no Brasil: ‘É o progresso… Dantes estávamos nós no poder. Agora estão os nossos primos.’’

Os poetas conhecem a medida inexata das coisas inconclusas. Certos livros, alguns (os raros), começam de verdade quando somem as palavras. Certos personagens trafegam à revelia de seus criadores. Victor, Otto, Lenia. A literatura não serve para nada. A literatura serve para propiciar, serve para sugerir indícios de futuros, que também podem ser esperança.

Helder Macedo é poeta e romancista, uma das vozes mais importantes da literatura de língua portuguesa contemporânea. É autor de Partes da África (1991), Vesperal (1957), Das fronteiras (1962), Poesia – 1957-1968 (1969), Poesia – 1957-1977 (1979) e Vícios e virtudes (2000), entre outros.


TÃO LONGO AMOR TÃO CURTA A VIDA

. De Helder Macedo
. Editora Rocco, 208 páginas, R$ 29,50

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