A jornada de Rozália
Livro de Suzana Montoro se inspira na saga de húngaros obrigados a deixar seu país depois da 1ª Guerra Mundial. Autora mergulhou nas sombras e misérias da Hungria
André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 08/03/2014
Suzana Montoro ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria autor estreante |
O livro surgiu das entrevistas feitas por ela com descendentes de húngaros, no interior de São Paulo, e de uma viagem à Hungria, país repleto de sombras e mistérios. Suzana acertou ao vivenciar boa parte da história.
Palavras alcançam mais rápido que bala de revólver. Como pensamentos, palavras abraçam distâncias. É a linguagem, o modo – sempre delicado – de dizer que pode, ou não, revelar um outro (ou outros) diante de nós (leitores). Reeditado pela Editora Rocco, o livro conta a história de Rozália, “mulher magra, muito magra, de aparência frágil”. Suzana abraça com vida a abstrata existência de Rozália, dona de “suave voz de passarinho”. Como maestrina, a autora conduz o ritmo, o fluxo dos acontecimentos.
Nossa heroína, sem capa e espada, é natural de um vilarejo incrustado nos Bálcãs, na bacia do Rio Danúbio. Certo dia, “com a mesma naturalidade com que se acorda todas as manhãs”, o povoado virou iugoslavo, obrigando o povo húngaro a migrar para outras partes do mundo. Rozália, sua família e outros hungareses vieram para São Paulo. Soa meio estranha essa palavra, que indica périplos, encontros e desencontros: segundo o dicionário, hungarês é relativo à Hungria, ou o habitante da Hungria.
A violência da profunda transformação geográfica, ditada e imposta por imposturas políticas, abarca a trama do livro de Suzana. O mundo, não poucas vezes, é como um quebra-cabeça que se desmonta, levando consigo memórias, certezas e esperanças. Tudo é movimento, mas às vezes surge a feiúra de um maquinário rude, desumano, que mata e retira das pessoas singularidades e essências a princípio inalteráveis.
A gravidade da vida empurra almas e pessoas para o estrangeiro. Mas também existe (a literatura, a poesia) uma espécie de gravidade inversa que, das raízes, impulsiona todas as sementes. Há que se prestar atenção nos pássaros cosmopolitas, existem nuvens e flores desprovidas de pátria definida.
Apesar de transitar dentro de um contexto histórico e político inegável, Suzana prefere apresentar ao leitor, prefere reconstituir o microcosmo ao redor da vida de uma mulher sob o prisma de sua intimidade. É inevitável, assim, não nos reconhecermos nas desventuras de Rozália, diante de turbulências que assombram por sua enorme carga de humanidade. Rozália enfrenta a morte precoce da mãe, o magnetistmo de uma tia excêntrica, amores proibidos, fugas e o abandono, palavra feia, signo feito de cardos e pontas duras.
Suzana se arriscou, seguindo, certamente, intuições poderosas. São essas situações universais, de todos nós, brasileiros, etíopes, húngaros, que tornam o romance no mínimo interessante. A força das coisas, de todas as coisas, “está no olhar azulado e na voz, apesar de extremamente suaves.”
A escritora de Os hungareses se identifica, logo de cara, com a filha caçula de Rozália. Assim, a narrativa ganha novos rumos, temperos e sabores. Duas vozes dizem muito. Ora é a narradora-filha que conta, em terceira pessoa, a saga da mãe; ora a própria Rozália assume o timão de um barco doido, que transita no mar feito de inverossimilhanças.
Observador mais que privilegiado, o leitor se defronta com duas almas que buscam e atingem, que alcançam tonalidades promissoras em termos de sentido e sentimento. Linguagem e literatura são caminhos abstratos feitos de sonho, nuvem e alegria. O dia, todos os caminhos pedem, precisam ser reinventados, às vezes seguindo critérios específicos, às vezes não. Para assim inventarmos idiomas, com a gramática feita de silêncio, cheiros, gestos, músicas sempre possíveis.
O que podem revelar as idiossincrasias, os vários modos, condutas que norteiam as pessoas de uma pequena comunidade, as pessoas de um lugar? Muito. O mundo é enorme; e não é. Suzana mostra que, apesar das distâncias, estamos juntos, transitamos sem saber dentro de uma teia feita de fissuras, ferrugens, mas também adornada de zínias, gérberas e absintos.
Romancista, contista e roteirista, Suzana Montoro é autora de O menino das chuvas, que recebeu o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantojuvenil (FNLIJ). Seu livro Nem eu nem outro (Edições SM) ganhou menção honrosa do Prêmio Barco a Vapor 2009 e foi finalista do Prêmio Jabuti em 2012.
OS HUNGARESES
• De Suzana Montoro
• Rocco,
• 192 páginas, R$ 29,50
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