O sonho e o desencanto
Maior site de buscas da internet, o Google nasceu em meio a promessas utópicas de democratização da cultura, mas pratica o mais selvagem pragmatismo de mercado
João Lanari Bo
Estado de Minas: 08/03/2014
Sergey Brin e Larry Page, inventores do PageRank: o idealismo, mais uma vez, rende-se ao capitalismo |
‘‘Don’t be evil” foi o moto corporativo inventado pelo pessoal que trabalhava no início do Google, em 2000 ou 2001, numa reunião em que se discutiam os “valores” que deveriam nortear a empresa. A ideia era marcar a diferença com os competidores, os motores de busca da internet mais fortes no mercado à época (Altavista, Yahoo). Essas empresas estavam “explorando os usuários” ao misturar capciosamente propaganda com resultados da busca. A marca Google queria ser percebida como um projeto utópico, idealista e altruísta: organizar o acesso universal à informação e ao conhecimento por meio de uma tecnologia “mágica” livre do bombardeio publicitário sub-reptício, uma espécie de celebração coletiva e consensual do progresso da humanidade.
Os inventores do PageRank, o formidável algoritmo que transformou o Google nessa virtual unanimidade do ciberespaço, Sergey Brin e Larry Page, chegaram a escrever um paper acadêmico em Stanford contra os motores de busca vinculados à propaganda. Isso ocorreu em 1998, e logo os dois começaram a mudar de ideia, ao mesmo tempo em que saíam da garagem que ocupavam e estruturavam a empresa nos moldes capitalistas das startups do Vale do Silício californiano.
A história oficial do Google se inclui nas narrativas mitológicas que os americanos inventaram para vender ao mundo a excelência de suas empresas inovadoras – mitologia que os demais países, inclusive o Brasil, querem desesperadamente copiar. Em pouco mais de uma década, a empresa cresceu de maneira avassaladora, consolidou um motor de busca que para muita gente confunde-se com a própria internet, expandiu-se para outros domínios, e... passou a praticar, sugerem os críticos, uma crescente e inquietante “maldade”.
O menino bom se transformou num adolescente esperto demais e ninguém sabe o que vai ocorrer quando ele chegar à maturidade.
Hoje, o famoso algoritmo seminal muda 500 a 600 vezes por ano: muda para reorganizar, com velocidade assombrosa, o imenso cabedal de informações personalizadas mantidas nos data centers do Google. São 12 centros operando non-stop: seis nos EUA, um na América Latina (Chile), três na Europa e dois na Ásia. “See where the internet lives”, diz a página do próprio Google, onipresente e onisciente, sem falsa modéstia. Tudo isso para relançar as pegadas digitais dos inúmeros usos que fazemos da internet a partir da busca no Google, as páginas que visitamos, os assuntos que nos atraem, com o fim de adequar nossos desejos, obsessões e ambições à oferta de produtos e serviços.
Adesão Se o internauta for além da simples busca e usar alguns dos serviços do grupo – Gmail (425 milhões de usuários), YouTube, blogger, iGoogle –, os detalhes da auscultação serão mais acurados ainda. O que era o sonho da universalização do saber se transformou no mais esmerado e milimetricamente construído mercado publicitário de que se tem notícia. Uma construção, diga-se de passagem, baseada em complexos modelos matemáticos de padronização que ignoram as convenções clássicas das agências de publicidade. Pior: essa armação ocorre com a nossa (in)voluntária e irrestrita adesão.
Como fomos seduzidos, como somos seduzidos diariamente, inúmeras vezes, para essa armadilha? Nossa confiança no Google é sobretudo pragmática, no sentido ordinário do termo. Acreditamos que o consenso em torno dele, obtido por meios aparentemente democráticos, é digno de confiança. O método do Google de depender do juízo ativo e coletivo de milhões de cibernautas parece a aplicação de uma das teorias mais influentes da epistemologia: o famigerado pragmatismo americano, desenvolvido por Charles Peirce e William James no século 19, aperfeiçoado por Richard Rorty quase 100 anos depois.
A verdade, nessa linha de pensamento, “é gerada por um processo de experimentação, descobrimento, retroalimentação e consenso”. Um enunciado verdadeiro é aquele que surte efeito no mundo, diria James. As páginas que aparecem na tela do computador são aquelas automaticamente mais “populares” – quer dizer, são aquelas que têm mais links em outras páginas igualmente “populares”, e assim por diante. Um clique de busca desencadeia a cadeia global de consultas, que conferem de maneira quase instantânea no imenso depositório de páginas visitadas quais as mais relevantes associadas com aquela procura. Enfim, somos nós, os bilhões de usuários do Google, que construímos em tempo integral essa maravilha, ou esse monstro, conforme o ângulo da análise.
Essa e outras finas ideias o leitor pode encontrar no livro A googlelização de tudo, de Siva Vaidhyanathan (Editora Cultrix). Embora um pouco defasado, pois foi escrito em 2010, o texto desse americano descendente de indianos é implacável em seu arsenal crítico, sem apelar para a pichação exagerada de que o Google se tornou alvo nos últimos anos. Em maio de 2012, confirmando a tendência apontada por Siva de privilegiar o lado “comercial” em detrimento do “idealista”, a empresa anunciou que não mais manteria a separação estrita entre resultado de buscas e propaganda. O método para aferir qual anunciante ocupará o topo da lista passou a se basear exclusivamente nos leilões-relâmpago que o Google faz entre os anunciantes por meio de seu principal programa de publicidade, o AdWords – que se apoia nos gigabytes das informações pessoais e o conteúdo criativo fornecidos gratuitamente por milhões de usuários à rede todos os dias.
Os críticos insistem: os pequenos negócios perderão de vez a chance de obter visibilidade em função da relevância, pois quem vai ocupar o topo da lista dos resultados da procura será quem pagar mais no leilão. E os consumidores, os usuários do Google na internet, acostumados com a indicação baseada na relevância – o tradicional Google do “don’t be evil” – talvez não se deem conta da transição...
Digitalização de livros Outra área em que essa postura “do bem” se pretendia imutável era a discussão da chamada “neutralidade da rede”, que o Google defendia encarniçadamente. No Brasil, esse tópico, como se sabe, é um dos nós que vêm travando a aprovação do marco civil da internet no Congresso. O gigante da internet se aliava, nesse particular, aos puristas da internet, ciosos na manutenção da “democracia na rede, permitindo assim acesso igualitário de informações a todos, sem quaisquer interferências no tráfego on-line”. Quando a empresa entrou no negócio de vender serviço de banda (Google Fiber), mudou de ideia.
O acesso passou a ser, doravante, proporcional a quem paga mais. O Google Books, outra estratégia de expansão supostamente ancorada no “acesso universal ao conhecimento e cultura”, mostrou limites antes impensáveis para a empresa: a simples possibilidade de digitalização de livros despertou ondas de preocupação no ecossistema global de informação, levantando dúvidas e ansiedades nos diversos agentes do sistema (direitos autorais, privatização de bibliotecas públicas). Depois de uma longa e tumultuada batalha judicial, o cenário resultante parece trazer embutida perversa reviravolta que poderá restringir ainda mais o acesso prometido, favorecendo comercialmente a posição do Google no mercado de livros digitais, como sugerem especialistas – entre eles Lawrence Lessig, respeitado professor de Harvard. Ou seja, acesso universal, mas de acordo com o que pode pagar o consumidor.
Toda essa transformação do perfil do Google repercute, inevitavelmente, na imagem de seus dirigentes, que parecem agora mais arrogantes e soberbos. Alguns entram e saem do governo, outros se arrogam o direito de destilar profecias geopolíticas ligadas ao progresso tecnológico, em geral inspiradas nos tabus e preconceitos da visão de mundo conservadora do mainstream norte-americano. Na Europa, onde o Google é responsável pela assombrosa cifra de 90% das buscas, a empresa está prestes a sofrer a maior sanção de sua história em virtude das novas e espertas práticas comerciais. O caso Google, um sucesso empresarial absurdamente significativo, ilustraria talvez uma daquelas famosas doutrinas de Jean Jacques Rousseau: “O homem nasce bom e a sociedade o corrompe”.
Do idealismo da garagem, que tanto influenciou e estimulou jovens empreendedores nos quatro cantos do planeta, o grupo que criou a empresa terminou aterrissando no pragmatismo selvagem de mercado, como suporia, aliás, a velha e vã filosofia.
João Lanari Bo é professor de cinema da Universidade de Brasília (UnB)
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