Labirintos e novas chaves
João Paulo
Estado de Minas: 08/03/2014
Não criamos problemas que não podemos resolver: recusar a política é jogar fora a chave de casa |
Jorge Luis Borges escreveu certa vez que o mais amedrontador dos labirintos é o que não tem paredes. Não se trata de um paradoxo, mas de uma constatação: vivemos imersos em um mundo cheio de limites que nos constrangem sem que tenhamos consciência deles. E, como em todo labirinto, não vemos a saída e seguimos como ratos tateando nos mesmos caminhos.
O que parece ser apenas bom argumento para um conto ou um pequeno pesadelo diurno pode ser adaptado para várias situações da vida real. Nossas escolhas são sempre marcadas pelos condicionamentos do tempo. Em nenhum terreno isso é mais nítido do que na política. Todos querem mudar o rumo das coisas, melhorar o mundo, aprimorar as instituições, garantir mais liberdade e igualdade. No plano das ideias.
Quando se chega na prática, no entanto, fica difícil sair da imitação para propor a novos rumos de fato. Vencer a mimese e parir a criação. Criticamos sempre o outro com os mesmos argumentos com que somos diminuídos pelos adversários. O cenário eleitoral que atravessamos é um bom território para testar limites e propor caminhos de fato inovadores. Para um labirinto invisível, chaves criativas são cada vez mais necessárias.
O primeiro teste talvez seja a capacidade de recuperar distinções fundamentais que vêm sendo amortecidas com o tempo. É o caso do par direita e esquerda. Os dois lados parecem temer a defesa necessária de sua forma de pensar. Sem ir à raiz dos termos e das posturas ideológicas, direita e esquerda ajudam a localizar o campo de batalha de diferentes projetos de sociedade. Por isso, quanto mais explícitos, melhor para a sociedade.
A direita, que se constrange em dizer seu nome, tem um projeto político que precisa ser defendido de peito aberto. Seja na vindicação de princípios, como a propriedade privada, a meritocracia e a livre iniciativa, seja em sua forma de expressão do poder, que tende para a aristocracia e para a representatividade, o conservadorismo precisa assumir suas bandeiras com mais clareza. Na agenda da direita estão situados temas que fazem muita falta ao debate político.
A esquerda, por sua vez, se encontra no grande desafio de avançar duplamente, no campo dos projetos e do exercício da política. Há uma cobrança por eficiência que vai além da ideologia e questiona se há um modo socialista de gerir políticas públicas. Por outro lado, a incorporação da democracia como horizonte do socialismo (e nesse sentido patrimônio muito mais dos progressistas que dos liberais) estimula a ir além do revolucionarismo, do ceticismo e do adesismo de ocasião. Além de desafiar a criar formas de democracia direta, que ampliem o grau de participação popular.
Direita e esquerda hoje podem ser bons operadores para julgar distintos projetos políticos, deixando de lado tanto o discurso moralista da direita – que vê corrupção e incompetência em tudo, mas não mira o próprio umbigo – como o triunfalismo das esquerdas – que anula a crítica em nome de uma certeza mais filosófica que real na construção de um novo modelo de sociedade. Recuperar as duas categorias históricas de julgamento pode recolocar em cena propósitos que deem ao cidadão real papel no jogo democrático.
Consciência possível
O segundo elemento que pode dinamizar a vida política brasileira nessa quadra de debates em torno de projetos de governo é, mais uma vez, uma categoria que já tem história – na verdade quase 100 anos –, apresentada pelo pensador marxista Gyorgy Lukács (e bastante contestada à direita e à esquerda, é bom que se diga). Trata-se do conceito de “consciência possível”. Para o filósofo húngaro, ainda nos anos 1920, a consciência tem gradações, ela pode ser desenvolvida, aprimorada, aprofundada. Em outras palavras, é possível ir de um estágio de menor consciência para um momento de consciência ampliada, o que indicaria o grau de amadurecimento político.
Assim, quando uma classe chega ao poder, terá seu papel histórico mais ou menos determinante e significativo quanto maior for seu patamar de consciência. Quanto mais consciente de seu papel, mais progressista seria uma classe em seu projeto de exercício de poder. Trazendo para nossa realidade, de forma mais simbólica que propriamente teórica, o conceito de consciência possível talvez nos ajude a compreender o papel dos diferentes segmentos sociais no Brasil durante os últimos governos.
De forma sumamente didática, o Brasil viveu nos últimos 20 anos dois projetos diferenciados, um em torno do PSDB e outro do PT, ambos partidos com seus aliados de ocasião, que têm diferentes motivações e fundamentos. De um lado o neoliberalismo privatista, de outro o desenvolvimentismo social. De certa forma, passadas duas décadas, são projetos que, em linhas gerais, se mantêm operantes.
Como se portaram as classes sociais nesses dois momentos históricos? É justamente aí que a ideia de “consciência possível” pode ser uma boa chave para nosso labirinto invisível. Há uma mudança inquestionável no perfil de visibilidade de parte significativa da sociedade brasileira nos últimos anos. Falou-se, com diferentes graus de sutileza sociológica, em “nova classe média” e “batalhadores”, como tentativa de explicar o novo ator social, incluído por meio do consumo (e muitas vezes rejeitado exatamente por isso).
O desafio dado hoje é exatamente – e para os dois lados, é bom frisar, já que as classes sociais não são “base” natural de nenhum dos dois projetos – avançar em grau de consciência. O aprimoramento político será dado pela capacidade de alimentar a consciência do consumidor, transfigurando-a em postura de cidadão. Para isso, é preciso sair do patamar da concessão para o da autopostulação de direitos essenciais. O consumo não integra, apenas inclui.
A grande lição que vem sendo dada pela nova cidadania brasileira é um avanço tanto para os conservadores como para os progressistas. Para os primeiros, ensinou que a sociedade é mais complexa e capaz de articulação do que sonhavam os vãos projetos de construção da hegemonia via meios de comunicação (não é um acaso que os candidatos dos grandes meios de comunicação percam eleições seguidamente). Para a esquerda, chega a constatação de que os novos cidadãos, ainda que incluídos via políticas distributivas e de renda mínima, não aceitam o papel de coadjuvantes ou expressam alinhamento mecânico. A chamada nova classe média apresentou o povo à direita e o cidadão à esquerda.
Duas conversas
Por fim, a terceira gazua para nossas paredes invisíveis da política é a capacidade de entender os novos universos da fala. Hoje não existem apenas papos sérios, há muita conversa fiada. Não se trata de uma crítica sobre o esvaziamento cultural da contemporaneidade, como muitos gostam de lamentar, mas um novo paradigma de comunicação. As pessoas ganharam novas formas de elocução. O discurso interpessoal nunca foi tão poderoso em termos quantitativos, o que, certamente, tem consequência no nível de sua realização.
A resposta que os políticos têm dado a essa revolução tem perdido o que ela tem de melhor. Quase sempre, as redes sociais são vistas como territórios que é preciso dominar com a linguagem da publicidade, como se se tratasse apenas de novos consumidores. Os gastos com esse tipo de campanha têm aumentado e dirigem parte significativa da atenção dos marqueteiros e candidatos. No entanto, parecem que estão deixando de lado o mais importante: não se trata apenas de mais gente disposta a ouvir, mas de novos sujeitos capazes de falar.
E o que falam os atores sociais siderados pela comunicação em rede? Em primeiro lugar, desestabilizam o sistema centralizado para propor novos discursos. Em seguida, trata-se de uma ferramenta de mobilização que anula a ideia de centro, criando uma nova geometria política paradoxal: o centro é a periferia, está em todo lugar, ao mesmo tempo. Por fim, mudam o rumo das falas, de temas verticais definidos de forma autoritária ou tradicional, para assuntos que dizem respeito às vidas dos novos falantes. Um não às agendas predeterminadas dos publicitários ou dos políticos convencionais. Quem não souber ouvir, vai perder o bonde da história.
Há, como identificou o filósofo Renato Janine Ribeiro, novos “elos fracos” que competem com os “elos fortes” da comunicação. A conversa mole pode pautar a conversa dura. Um exemplo dessa surdez foi dada recentemente durante a convocação dos jovens para ocupar shoppings. O discurso foi lido com a chave tradicional da invasão e da violência, o que motivou ações desmedidas e tacanhas, próprias de quem sempre foi mouco para a diferença.
A nova comunicação em rede criou um território livre, muitas vezes aplainado, mas que tem sua expressividade própria e invencível. Não é bom ou ruim, é assim. Janine propõe que devemos nos acostumar com a “riqueza do efêmero”. É uma boa definição de comunicação. Pode ser o novo desafio para política a ser construída. A única certeza do labirinto é que as paredes estão lá. A liberdade não se resume apenas em encontrar a saída, mas em lutar para que ela exista de fato, ainda que como horizonte.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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