sábado, 8 de março de 2014

Testemunha da história - Walter Sebastião

Testemunha da história
 
Boris Kossoy ajuda o Brasil a se descobrir por meio da fotografia. Graças a ele, o trabalho do pioneiro Hercule Romuald Florence é mundialmente reconhecido


Walter Sebastião
Estado de Minas: 08/03/2014


Boris Kossoy observa trabalhos da exposição Um olhar sobre o Brasil, em Belo Horizonte     (Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Boris Kossoy observa trabalhos da exposição Um olhar sobre o Brasil, em Belo Horizonte


Atrás de toda foto tem uma história. Essa afirmação vem do pesquisador e professor Boris Kossoy, de 72 anos, um dos mais importantes estudiosos de fotografia do país. Tal observação traduz o método de trabalho dele: a defesa da criação de uma trama de imagens e textos para oferecer a “compreensão expandida” tanto da história quanto da fotografia. A primeira ganha materialidade; a outra, múltiplos significados.

Juntas, história e fotografia oferecem rica contextualização econômica, política e cultural para os acontecimentos. Tal consideração vem de um pesquisador que recusa tanto a crença de que uma imagem vale por mil palavras quanto o poder do relato verbal, por si, de reconstituir a vida social.

Essas ideias marcam a exposição Um olhar sobre o Brasil, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Belo Horizonte, cuja curadoria é assinada por Boris Kossoy e Lilia Moritz Schwarcz. “O que tenho feito é pensar o país por meio da documentação fotográfica, buscar imagens que dão vida e presença aos personagens dela”, explica Kossoy.

Esse pesquisador e fotógrafo fez história. Seu livro Hercule Florence, a descoberta isolada da fotografia no Brasil colocou Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879) entre “os cinco ou seis” inventores dos processos fotográficos. O trabalho aborda as experiências de um franco-brasileiro na Vila de São Carlos (atual Campinas), em São Paulo, realizadas antes de 1839 – “data oficial” da invenção da fotografia.

“Tenho levado a vida como fotógrafo e pesquisador. Existe o Boris e o Kossoy. Eles se encontram à noite e, infelizmente, dormem juntos. Mas vivem da melhor forma possível”, brinca. Aos 13 anos, Boris Kossoy começou a fotografar, fascinado pelas imagens publicadas na revista O Cruzeiro. Formado em arquitetura, criou o estúdio Ampliart, em 1968, voltado para jornalismo, publicidade e retratos. “Naquele tempo, fazia-se de tudo para sobreviver”, recorda ele.

A partir de 1977, Boris Kossoy fez carreira como professor e pesquisador na Universidade de São Paulo (USP). Publicou 11 livros – o primeiro foi Viagem pelo fantástico (1971). Boris Kossoy fotógrafo (CosacNaify) reúne as quatro décadas de trabalho autoral do pesquisador, além de entrevistas.

A história da fotografia brasileira é pouco conhecida, adverte o professor. “Sabe-se sobre o século 19. Temos um vácuo com relação aos fotógrafos do século 20”, afirma. Ele não é fã apenas de personagens ilustres. “Meu interesse é pelos anônimos. Pensando neles, fiz o Dicionário histórico-fotográfico brasileiro, que traz centenas de pessoas que entraram no Brasil profundo e longínquo, passaram por vilas e pequenas cidades e trouxeram de lá as feições e os costumes do brasileiro.”

Suplemento


Hercule Florence – A descoberta isolada da fotografia no Brasil (Edusp) é um livro especial para Boris Kossoy. Lançado em 1977, está na terceira edição. Em 1972, o pesquisador ouviu falar pela primeira vez em Florence. Naquela época, escrevia no suplemento literário do jornal O Estado de S. Paulo. Ao receber uma ligação de Eduardo Salvatone, presidente do Foto Clube Bandeirantes, ouviu que precisava conhecer Arnaldo Machado Florence, que dizia ter sido seu trisavô o inventor da fotografia. “Não dei bola”, assume Kossoy. Tempos depois, ele decidiu conhecer o tal herdeiro.

“Arnaldo me mostrou o manuscrito já deteriorado com as anotações de Florence. Lendo, fui me envolvendo com a história. Mas, como advogado do diabo, fiz todas as perguntas e objeções possíveis”, recorda. Colegas da Europa e dos Estados Unidos o alertaram para o perigo de fraude, pois consideravam impossível a hipótese de alguém no Brasil, isoladamente, ter criado o processo fotográfico.

“Consegui a comprovação histórica do caminho que Florence percorreu, mas precisava da comprovação científica de que os métodos dele funcionavam. Intimamente, ainda tinha minhas dúvidas, apesar de toda a repercussão que a história foi ganhando”, relembra. Os jornais se interessaram pelo assunto e, em 1976, o Instituto de Tecnologia de Rochester, nos Estados Unidos, refez as experiências de Florence. Confirmou-se que a poligrafia funcionava. Assim, Florence batizou o processo criado por ele. Detalhe: também usava a palavra photographie para definir sua descoberta.

“Ainda hoje, tenho um sentimento de satisfação indescritível por comprovar uma história que parecia inacreditável. Penso no quanto Hercule Florence ficaria feliz em ser colocado entre os inventores da fotografia”, revela Boris Kossoy. Seu livro ganhou importância na bibliografia sobre as invenções: já foi traduzido para o espanhol, ganhará tradução para o alemão este ano, e a versão francesa está prevista para 2015. Entretanto, pouco restou do trabalho de Florence, que usava a poligrafia para reproduzir diplomas maçônicos e rótulos de garrafas.

A Pampulha, sob as lentes de Marcel Gautherot, está presente em Um olhar sobre o Brasil     (Marcel Gautherot/divulgação)
A Pampulha, sob as lentes de Marcel Gautherot, está presente em Um olhar sobre o Brasil


O PESQUISADOR E SEU OFÍCIO

Método
“O que faço é pensar o Brasil por meio da documentação fotográfica, buscar imagens que dão vida e podem trazer a presença dos personagens da história brasileira. Isso é impossível apenas com textos. Imaginar o mundo apenas pelo relato verbal é esforço centrado apenas no imaginário do leitor. Por trás da imagem tem uma história. Não se pode prescindir da palavra e da contextualização quando se quer uma base científica para o extraquadro, para o que não está na imagem. Cruzar relatos e imagens é uma forma muito eficaz de compreender os fatos. Você passa a ver e ter noção de espaço, das aparências, tem uma ideia de onde os fatos aconteceram – aspectos que alimentam o imaginário para melhor compreensão.”

Contemporâneos
“A fotografia contemporânea vai muito bem, vem ganhando presença internacional. Temos jovens fotógrafos brasileiros com trabalho muito significativo. Crescemos em qualidade, número de autores e temas. Acho positiva a preocupação com a memória, um olhar mais sério sobre a história – isso não existia dos anos 1960 a 1980. Pequenas cidades já contam com arquivos e centro culturais que mereciam mais verbas por seu trabalho, de enorme importância, ao salvaguardar a memória. Os primeiros museus de imagem e do som, nos anos 1960, trouxeram a consciência da necessidade de cuidar dessa área.”

Desafios
“Pela coragem, temática e obra realizada, admiro Mário Cravo Neto, Evandro Teixeira, Orlando Brito, Juca Martins, Marcel Gautherot e muitos outros. Todos merecem ser melhor conhecidos. Temos um número enorme de bons fotógrafos e, ao longo do tempo, há crescimento progressivo e ascendente deles. Há o problema de mercado de trabalho para todo esse contingente, obrigando todos a buscar serviço o tempo todo. Não sou xiita, uso digital, mas essa tecnologia tirou o mercado de trabalho de muita gente boa, além de trazer a decadência do gosto e do rigor artístico em relação ao feito no passado. Há uma grande diferença entre fotógrafos que aprenderam o ofício com o analógico – eles entraram no laboratório, viram o milagre de a imagem surgir do revelador – e aqueles que começaram com o digital. Um recebia dois, três rolos de filme e tinha de voltar com foto boa. O outro fica no clique, clique, clique, faz 400 fotos, mas poucas com qualidade.”


UM OLHAR SOBRE O BRASIL
Fotografia brasileira de 1883 a 2003. Trabalhos de Sebastião Salgado, Marcel Gautherot, Mário Cravo Neto e Orlando Brito, entre outros. Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade, 450, Funcionários, (31) 3431-9400. De quarta a segunda-feira, das 9h às 21h. Entrada franca. Até 28 de abril

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