Novo livro de Ana Miranda, Semíramis tem como personagem-chave o romancista José de Alencar. Narrativa recupera momentos marcantes da vida política e da sensibilidade brasileira no século 19
João Paulo
Estado de Minas: 15/03/2014
Ana Miranda já levou para seus romances outros
personagens da literatura brasileira, como Gregório de Matos, Gonçalves
Dias e Augusto dos Anjos
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Ao se aproximar de outros escritores como personagens, como Augusto dos Anjos (1884-1914), em A última quimera, e Gonçalves Dias (1823-1864), em Dias & Dias, Ana Miranda, sem perder o lastro factual, foi dando cada vez mais espaço à fantasia. No livro sobre Augusto dos Anjos está presente o clima de descaminho dos primeiros anos da República, os embates literários que mobilizavam os intelectuais do período, a vida de província, a busca de uma lírica capaz de incorporar a ciência e a metafísica. Ao falar de Gonçalves Dias, entram em cena a sensibilidade romântica, a descoberta da cultura indigenista, o nacionalismo exacerbado, a nostalgia do exílio.
A literatura brasileira e seus autores se tornam para Ana Miranda muito mais que temas e personagens. São ambientes históricos, universos morais nos quais os escritores surgem como atores que simbolizam uma forma de sensibilidade. Por isso, ainda que os livros da romancista caminhem cada vez mais para a criação, há uma âncora de realidade histórica que precisa ser mantida. A grande realização da escritora é conseguir transformar o que é pesquisa em elemento da narrativa. Ela não explica ou ilustra sua visão do período histórico e de seus atores, mas os coloca em ação a partir de aspectos que fazem parte do mundo retratado.
Em seu mais novo romance, Semíramis, o escritor da vez é José de Alencar (1829-1877). Trata-se de homem que sintetiza em sua obra e atuação política os grandes momentos do século 19 antes da República. Como romancista foi, talvez, o primeiro escritor profissional do país, representante máximo do romantismo no Brasil, autor de obras-primas como Iracema, O guarani e Lucíola. Foi também dramaturgo de sucesso e polemista. Gostava de criticar, mas, meio enfezado, detestava críticas.
Além disso, como jornalista era das penas mais temidas de seu tempo, tendo como inimigos ninguém menos que o duque de Caxias e dom Pedro II. Filho do padre e senador, chegou a ministro e colecionou adversários literários e ideológicos. De família importante no Ceará, era neto de dona Bárbara Pereira de Alencar (Bárbara do Crato), figura decisiva na Confederação do Equador e considerada a primeira presa política do Brasil. Seu pai foi deputado constituinte por duas vezes e senador vitalício. Conspirou contra Pedro I para levar ao trono Pedro II, que depois seria desafeto do filho.
Alencar é uma presença viva na cultura brasileira. Mesmo com forte acento de época, alguns de seus romances ainda são lidos nas escolas, adaptados para novelas de televisão e fazem parte do imaginário romântico brasileiro. Os fatos da agitada vida de José de Alencar estão em biografias bastante conhecidas, escritas por R. Magalhães Júnior (José de Alencar e sua época), Luís Viana Filho (A vida de José de Alencar) e, mais recentemente, no excelente O inimigo do rei – Uma biografia de José de Alencar ou a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava d. Pedro II e acabou inventando o Brasil, de Lira Neto. Semíramis é outra história.
A começar pela linguagem poética que conduz a prosa da escritora. Há um perfume de romantismo tanto na sintaxe como nas imagens e vocabulário, o que dá a sensação de que se lê um romance que poderia ter sido escrito por Alencar. Mais que imitação da forma, trata-se da confirmação de um modelo de narração, que dá grande importância à linguagem e suas evocações líricas. Há coisas que se dizem com poucas palavras; há momentos em que as palavras escondem o real sentido do que está sendo narrado.
Cazuzinha
O livro é estruturado em pequenos capítulos, escritos em primeira pessoa por Iriana, irmã de Semíramis, que dá nome ao romance. A narradora vai desfiando, com extrema delicadeza, a história social da região, sempre a partir de evocações pessoais. Há uma mão dupla entre o homem e a natureza, entre a psicologia e a política. Iriana, logo nos primeiros passos da narrativa, acompanha o pai em uma viagem ao Alagadiço Novo, terra dos Alencar. Lá, ela se encontra com a mãe do futuro escritor, que vive maritalmente com o padre José Martiniano, nos últimos dias de gravidez. Vê nascer o menino, que ganha o apelido de Cazuzinha (algo como moleque no linguajar do sertão), e logo sente que ele fará sempre parte de seu destino.
O que se segue não é a biografia de José de Alencar, contada de forma convencional, mas as impressões de Iriana e de sua irmã Semíramis. Em tudo distintas – a narradora é mulher da terra e a irmã uma sonhadora sensual –, elas logo se separam. Iriana fica no Ceará e Semíramis parte para o Rio e para um casamento com homem de destaque no cenário político. Torna-se uma mulher urbana, que frequenta teatros e óperas e alimenta sonhos bovaristas. Semíramis passa a escrever para a irmã, que vive a partir do que as cartas lhe trazem. A realidade se desdobra. Iriana se casa contra sua vontade, de preto, num vestido tingido de lama. O marido se mata na noite de núpcias. Uma viúva sem a experiência do amor.
Logo Cazuzinha se torna personagem importante na trama, autor de peças e romances, que tem sua vida sempre narrada por Semíramis, que faz com que a irmã se sinta próxima dele. Chega a sugerir que enredos para o palco, artigos para a imprensa e romances como A viuvinha tenham ligação com elas. Como as sonhadoras leitoras de romance, Iriana passa a ler sua própria vida como uma história narrada em folhetim.
Ana Miranda mescla frases do próprio Alencar, cita personagens históricos, como Machado de Assis, Gonçalves Dias e Castro Alves, mistura eventos históricos com a imaginação de Semíramis. Traições, rompimentos, viagens, seduções, tudo chega a Iriana em meio ao cenário armado em sua imaginação pelas cartas da irmã. Romance dentro do romance, que caminha para um território em que a verdade desliza sobre a ficção.
Por meio da troca de cartas entre a viuvinha do sertão (que não consegue sair do Crato pela obrigação de cuidar da avó cega e doente) e a exuberante mulher de político de destaque no Rio de Janeiro cria-se uma realidade própria, atravessada de lirismo, fantasia e verdade política. Cazuzinha e, mais tarde, José de Alencar, completa o trio e se torna o elo que junta os fatos registrados na correspondência entre as irmãs. Não é um acaso que a narrativa seja conduzida por duas mulheres, já que Alencar foi, ao seu tempo, quem melhor se aprofundou na psicologia feminina, com diferentes perfis de heroínas, todas elas de alguma forma presentes em Semíramis.
Não é necessário buscar mensagens em romances. Eles existem para nos dar a sensação que a leitura é uma forma de vida, tão completa quanto qualquer outra. É o que o enredo do livro nos mostra ao revelar a alma de duas mulheres, construídas pela fantasia que julgam real, numa atitude que vem do romantismo e se mantém presente em vários momentos da existência. Se tudo existe para terminar em livro, em Semíramis o teorema se inverte: são as palavras que dão sentido à vida. É o que, com muito prazer, o romance de Ana Miranda oferece aos leitores de hoje, caso ainda sejam capazes de se entregar à literatura: uma promessa de felicidade.
Semíramis
. De Ana Miranda
. Editora Companhia das Letras, 272 páginas, R$ 39,50
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