Mutação forçada protege contra HIV
Cientistas dos EUA modificam gene em pacientes soropositivos e conseguem barrar a produção de uma proteína usada pelo vírus da Aids para infectar células humanas
Bruna Sensêve
Estado de Minas: 06/03/2014
Pablo Tebas, Carl June e Bruce Levine comandam o estudo promissor |
Um grupo raro de pessoas — de 1% a 2% de toda a população — é considerado “imune” à infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Elas têm no corpo mecanismos capazes de barrar a ação do vírus mesmo que expostas a ele em grande quantidade. Uma das grandes descobertas em torno do tratamento contra a Aids está justamente em uma mutação que esses indivíduos possuem no gene CCR5, chamada CCR5-delta-32. Desde então, terapias são testadas e desenvolvidas com foco nessa característica especial. Todas sem total sucesso até o trabalho de pesquisadores da Universidade de Pensilvânia, nos Estados Unidos, divulgado na edição de hoje da renomada revista científica New England Journal of Medicine.
Utilizando uma terapia genética personalizada, os cientistas foram capazes de bloquear o HIV e controlar o vírus sem o uso de medicamentos antirretrovirais. Além disso, o estudo mostra que é possível manipular células T do próprio paciente com HIV para imitar uma resistência que se dá naturalmente ao vírus com segurança e eficácia. A equipe liderada por Carl June, do Departamento de Patologia e Medicina Laboratorial da Escola de Medicina Perelman da universidade, modificou geneticamente as células do sistema imunológico de 12 pacientes soropositivos. A tecnologia utilizada para construir com segurança o exército de células T modificadas é chamada “dedos de zinco” (ZFN, em inglês). Algo como uma “tesoura molecular” capaz de imitar a mutação CCR5-delta-32 que, ao ser induzida, reduz a expressão das proteínas membranares CCR5. Sem elas, o HIV não encontra seu receptor e, portanto, não pode entrar e infectar a célula, tornando os pacientes resistentes ao vírus.
Para chegar a esse resultado, as células modificadas foram infundidas de volta ao organismo dos voluntários. Seis pacientes foram retirados do tratamento com antirretrovirais e seis mantiveram a medicação normalmente. As infusões foram toleráveis e seguras para os indivíduos e as células T mutantes mostraram uma persistência no organismo superior ao que é observado nas originais. Durante algumas semanas sob a interrupção do tratamento, as células T iniciais diminuíram no sangue, enquanto a redução das células modificadas foi significativamente menor. Os pesquisadores também observaram células modificadas no tecido linfoide associado ao intestino, que constitui um importante depósito de células imunitárias e reservatório de infecção por HIV — o que sugere que as estruturas modificadas estavam funcionando e trafegando normalmente no corpo.
As cargas virais caíram em quatro pacientes cujo tratamento foi interrompido durante 12 semanas, sendo que, em um deles, esteve abaixo do limite de detecção. “Isso reforça a nossa crença de que as células T modificadas são a chave que poderia eliminar a necessidade de antirretrovirais ao longo da vida e, potencialmente, levar a abordagens funcionalmente curativas para HIV/Aids”, comemora June. Os pacientes de Boston – duas pessoas tratadas nos EUA por meio do transplante de medula óssea – são citados como um exemplo da efetividade da terapia. Eles, inicialmente, foram considerados curados funcionalmente pelo procedimento, mas, na verdade, passaram apenas por um controle viral, pois, sem a mutação homozigótica, o vírus não é totalmente extinto.
Embora decepcionante para a comunidade de pesquisa, os resultados dos pacientes Boston destacaram fatores-chave quanto ao combate ao HIV. “Esses casos enfatizam a necessidade de proteger as células T do vírus”, detalha o coautor Pablo Tebas, diretor da Unidade de Estudos Clínicos da Aids no Centro de Penn para Pesquisa da Aids. “Os casos de Boston nos mostram que, para o paciente Berlim, não foi a quimioterapia ou a infusão de células estaminais de um doador que destruíram o HIV. Era a proteção das células T pela falta de CCR5. O procedimento de Boston não poderia eliminar completamente o reservatório de HIV e, quando o vírus voltou, as células T eram suscetíveis à infecção. A abordagem ZFN protege as células T do HIV e pode ser capaz de esgotar quase completamente o vírus, tal como as células são ainda funcionais.”
COMPROVAÇÃO Um fato em específico confirmou a teoria dos pesquisadores. O paciente que alcançou níveis indetectáveis do vírus no sangue mais tarde foi reconhecido como heterozigoto para a mutação delta-32 no gene CCR5. Em genética, chama-se heterozigoto ou heterozigótico o indivíduo que tem dois alelos diferentes do mesmo gene, sendo que cada gene possui dois alelos. Se eles são idênticos, a pessoa é considerada homozigótica para o gene. A diferença é que, às vezes, um alelo é dominante e outro, recessivo. O primeiro tem maior capacidade de manifestar as suas características. Já o segundo tem menor capacidade. Se os dois são iguais, a probabilidade das características não se manifestarem são praticamente nulas.
O indivíduo que recebeu a terapia genética provavelmente herdou apenas de um dos pais a mutação que ajuda no combate à infecção. Muitos acreditam que essa condição já é favorável a pelo menos diminuir o impacto do vírus no indivíduo até mesmo retardando os efeitos da doença. Com a terapia, essa ‘condição favorável” foi turbinada. “Uma vez que metade dos genes CCR5 do sujeito eram naturalmente interrompidos, a abordagem de edição gene conseguiu dar um pontapé na proteção natural contra o vírus, fornecido por herdar a mutação de um dos pais”, detalha Bruce Levine, professor da Escola de Medicina Perelman, na Universidade da Pensilvânia. “Esse caso nos dá uma melhor compreensão da mutação e da resposta do organismo à terapia, abrindo uma outra porta para o estudo”, acrescenta.
Segundo o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Edecio Cunha Neto, há tempos que se imaginava que uma alternativa para o HIV seria a terapia genética das células do hospedeiro para diminuir ou eliminar a expressão de CCR5 funcional nas células-alvo. Dessa forma, seria possível prejudicar a invasão e a replicação do vírus, controlando a infecção. “Avanços recentes da terapia genética que a fizeram mais segura permitiram que isso fosse posto em prática agora, mas ainda envolve riscos e a reconstituição com células modificadas é parcial. Elas têm uma meia-vida curta.” Ele ressalta que o estudo foi feito sem um grupo de controle, portanto, não fornece de forma definitiva informações sobre a eficácia do tratamento, somente da segurança dele.
“Uma forma mais definitiva de tratamento genético seria tratar as células-tronco da medula óssea e devolvê-las ao paciente, um procedimento chamado de transplante autólogo de medula, só que com células modificadas geneticamente.” Edecio Cunha acredita que isso permitiria, em tese, que todas as células T CD4+ da pessoa tivessem a mutação CCR5-delta-32. “O efeito seria pronunciado, parecido com o do paciente de Berlim que recebeu um transplante de homozigoto para a mutação.” Os pesquisadores afirmam que novos ensaios clínicos vão avaliar um maior número de células T modificadas em grupos maiores de pacientes, bem como estratégias para aumentar a persistência de mais células no corpo para conseguir um efeito terapêutico.
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