quinta-feira, 6 de março de 2014

MARINA COLASANTI » Carnaval do mundo flutuante‏

MARINA COLASANTI » Carnaval do mundo flutuante 
 
Estado de Minas: 06/03/2014


 (Tuttle/reprodução)

e dizem que houve um carnaval. Na casa de montanha, rodeada de verde, banhada por doces chuvas de fim de tarde, não chegou. Trouxe, para me proteger, um livro de delicadeza, Notas de cabeceira, de Sei Shonagon, poeta japonesa e dama a serviço da imperatriz Sadako, que entre os anos 990 e 1000 descreveu os hábitos refinados e os cerimoniais da corte.

Nela me refugio depois de ler o jornal. Se para mim é detestável ver bandos de homens de touca ninja e uniforme militar, fortemente armados, para Sei são “detestáveis”: “as pessoas, sem dotes particulares, que sorriem ambiguamente, fazendo mexericos. (...) Pássaros que voam em bandos emitindo gritos agudos. (...) O amante, para quem a custo conseguimos um esconderijo, que começa a roncar ruidosamente.(...) O homem que, para visitar clandestinamente uma dama, pôs um grande chapéu na esperança de não ser reconhecido, mas que, entrando rapidamente, esbarra contra a porta e deixa cair o chapéu com um baque surdo”.

O jornal me informa que a Rússia está descaradamente invadindo a Crimeia, enquanto Sei me diz como é desapontador “compor um poema que consideramos muito bonito e enviá-lo a alguém, sem receber outro em resposta”. Ou quando “à espera de alguém, tendo há pouco começado a noite, ouves bater furtivamente à porta e com o coração agitado esperas que o servo te anuncie a sua chegada, mas não é ele, é outro, por quem não tens nenhum interesse”.

Da China, chega a notícia de que, numa estação, homens vestidos de preto mataram a facadas 28 pessoas. Para Sei, chegava o requinte de “um espelho chinês de prata levemente escurecida”.

Eram “coisas agradáveis” na corte de Kyoto: “Conseguir escrever uma carta sobre papel chinês fino e imaculado, com caracteres delgados, apesar do pincel grosso. Trançar fios de seda brilhantes e coloridos. (...) A água que bebemos, quando à noite nos levantamos sedentos”.

Dessa poeta brilhante pouco se sabe. Na edição que tenho em mãos, diz o posfácio de Lydia Origlia: “Da vida de um gênio a quem, se tivesse sido abrigado em corpo masculino, teriam sido tributados fama, altos postos na corte e a honra de comparecer nas crônicas históricas da época, restam somente dados raros e nebulosos”.

Não era bonita, isso sim sabemos, mas tendo a poesia no DNA – filha do importante homem de letras Kiyohara no Motosuke – cultivou o espírito crítico, o amor pela cultura e pela beleza. O espírito crítico lhe rendeu não poucos inimigos. O amor pela beleza e pela cultura fez dela a artista que admiramos até hoje. E os dois dons juntos levaram numerosos amantes ao seu leito. Não à toa o título original do seu livro é Notas do travesseiro, e não de cabeceira.

“Delicioso é encontrar de manhã, junto ao travesseiro, uma graciosa flauta. Aquele que a esqueceu manda um servo buscá-la, e a envolvemos com cuidado em papel, quase se tratasse de uma carta dobrada, e a entregamos”.

Não tenho prazer especial em ser informada da volta de Gates ao topo da lista de bilionários. Prefiro ler que, indo ao Templo da Iluminação, e tendo recebido um bilhete do amante para que voltasse logo para matar sua saudade, Sei escreveu no lado avesso de uma folha de lótus: “O orvalho sobre as flores de lótus, que vou buscando/poderei abandoná-lo para voltar ao mundo flutuante?”.

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