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Histórias marginais
Quando a esquerda tentou matar o assassino de Che e a ditadura tramou a morte de Brizola
Daniel Camargos
Estado de Minas: 27/03/2014 04:00
Os
embates entre os militares que tomaram o poder no Brasil por mais de 20
anos e os militantes que partiram para a luta armada na tentativa de
resistir à ditadura e tentar devolver o país à democracia renderam
episódios essenciais da história do país. Na série de reportagens que o
Estado de Minas publica sobre os 50 anos do golpe militar, hoje são
contadas duas histórias que estão à margem das narrativas sobre o
período. Isso porque, apesar de planejadas com cuidado e pensadas nos
mínimos detalhes, elas acabaram não ocorrendo.
No
final da década de 1960, duas organizações – o Comando de Libertação
Nacional (Colina) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) – tramaram o
assassinato de Gary Prado, o militar boliviano responsável pela prisão
de Che Guevara na Bolívia. Quando Che foi assassinado, em outubro de
1967, os algozes do revolucionário argentino – que foi um dos
comandantes da Revolução Cubana, em 1959, e estava na selva boliviana
tentando implementar um foco guerrilheiro – se tornaram os alvos
prediletos das organizações de esquerda. Afinal, o principal ícone e
espelho de todos aqueles que brigavam para derrubar os governos
militares havia sido assassinado.
Do
outro lado do espectro ideológico uma trama de morte também deu errado. O
plano quase levado a cabo pelo o ex-delegado do Departamento de Ordem
Político Social (DOPS) do Espírito Santo, Cláudio Antônio Guerra, era
matar o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (PDT), um
ícone da resistência ao golpe, que havia voltado ao país com anistia e
preparava sua candidatura para o governo do Rio de Janeiro.
As "duas mortes" de Gary Prado
A primeira tentativa de matar Gary Prado foi de militantes do Colina. Quem conta a história é o professor da Universidade Católica de Salvador (UCSAL) Amilcar Baiardi, de 72 anos, que tinha 26 em 1968. "O Gary Prado veio fazer um curso do Estado Maior do Exército", lembra. O curso habilitava os militares a serem promovidos a coronel e posteriormente a general. A notícia foi divulgada nos jornais e ouriçou os cabeças do Colina. "Na época, o Colina ainda era pequeno e o argumento era que, fazendo uma ação dessas se teria um impacto enorme e poderia se converter na força hegemônica dos movimentos que pretendiam conduzir a luta armada no Brasil", conta o professor.
Amilcar já havia feito mestrado profissional na Colômbia e trabalhava em Salvador, onde vivia uma vida dentro da legalidade, apoiando os movimentos, mas sem ser clandestino. Ele conheceu em 1967, em Porto Alegre, onde morou, um dos líderes do Colina, João Lucas Alves, que foi à cidade dar treinamento militar, e ouviu dele: "Nós vamos vingar o Che". Passados alguns meses, se encontrou novamente com João Lucas, que lembrou da conversa e pediu que ele fosse para o Rio de Janeiro.
João Lucas encarregou Amilcar de ser o responsável pela redação do documento comunicando a nação e as outras organizações da América Latina da execução de Gary Prado. Amilcar foi para um aparelho de olhos vendados (como eram chamados os apartamentos usados pelas organizações) e começou a rabiscar o que seria o comunicado. Enquanto isso, João Lucas e mais dois militantes (Severino Viana Colon e José Roberto Monteiro) partiram para execução, confiando nas informações passadas por um agente infiltrado no comando do Estado Maior.
"O soldado avisou que ele (Gary Prado) passaria em uma rua do Botafogo", recorda Amilcar, que não faz ideia de quem era o agente infiltrado. Porém, a informação era errada e os três fuzilaram o major do exército alemão, Edward Ernest Tito Otto Maximilian Von Westernhagen, que também fazia o curso do Estado Maior. O erro foi descoberto no aparelho, quando olharam os documentos na pasta que Edward carregava. Amilcar lembra que fizeram um pacto de silêncio e o mistério sobre a morte do alemão (que havia lutado com os nazistas na Segunda Guerra Mundial) permaneceu até 1985, quando ele revelou a trama para o historiador Jacob Gorender (1923-2013), que escrevia o clássico livro Combate nas trevas (Editora Ática, 1985).
João Lucas e Severino Viana foram assassinados na prisão, após serem brutalmente torturados. José Roberto também foi preso, mas sobreviveu e morreu anos depois em um acidente de carro. "Foi uma frustração não ter vingado o Che", avalia Amilcar. Entretanto, ele acredita que se Gary Prado tivesse sido assassinado teria mudado pouco a história. "O grande equívoco foi iniciar a luta armada", entende.
Outro pretenso vingador de Che pensa diferente. Um dos líderes da VPR, Wellington Moreira Diniz, acredita que se o plano arquitetado pela organização tivesse dado certo a história seria diferente. O plano, aliás, incluía o sequestro de Gary Prado e também do então vice-presidente do país, o Almirante Augusto Rademaker, que meses depois fez parte da trinca que governou o Brasil, quando Costa e Silva se afastou do cargo.
"Pensa o tamanho da pancada no país que tem o vice-presidente sequestrado e o cara que matou o Che também. Pensa que naquele momento o pleno poder era dos militares. Sequestrar o vice-presidente e o símbolo da direita e do imperialismo que era o Gary Prado teria influenciado um movimento mundial", acredita Wellington, de 67 anos.
Wellington é, provavelmente, o militante com o maior número de ações armadas entre todas as organizações. É acusado pelos inquéritos militares de 38 assaltos, entre bancos, quartéis e automóveis, e de ter matado 12 pessoas em ações de resistência à ditadura. Foi ainda o responsável pela segurança do líder da VPR, o capitão Carlos Lamarca, e fez parte do grupo que roubou US$ 2,598 milhões (R$ 15 milhões) do cofre da amante do político Adhemar de Barros.
Em 1969 ele estava escalado para morar em um sítio na área da reserva de Tinguá, em Petropólis, na região serrana do Rio de Janeiro. Vivia com uma companheira e se passava por sitiante. Plantava milho e cana-de-açúcar e durante as noites cavava um buraco, que serviria como cativeiro de Rademaker e Gary Prado. "Era um buraco que deveria ser cavado com retroescavadeira. Na picareta, eram horas e mais horas de serviço", recorda.
Porém, quando a organização ia se reunir para decidir os passos finais das ações o plano deu errado. "Eu era o comandante da segurança e fui verificar o local do encontro. Quando entrei, os militares estavam lá", lembra. Wellington tentou resistir, trocou tiros com os militares, mas foi preso e o plano do sequestro ruiu. O objetivo era trocá-los por militantes presos, como foi feito meses depois pelo Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e pela Aliança Libertadora Nacional (ALN), que sequestraram o embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. "O Gary Prado ia dançar. Acidentes acontecem. Ele ia tropeçar e cair", confessa Wellington, dando a entender que o responsável pela morte de Che seria executado.
O padre que "executou" Brizola
Leonel Brizola (1922-2004) voltou do exílio no dia 6 de setembro de 1979. Desceu em Foz do Iguaçu, no Paraná, e na manhã seguinte foi para São Borja, no Rio Grande do Sul, onde visitou os túmulos do seu padrinho de casamento, o ex-presidente Getúlio Vargas, e de seu cunhado, o também ex-presidente João Goulart. Quando Brizola chegou a Porto Alegre, dias depois, viu um impresso soturno: o convite para seu próprio enterro. Em 1983, Brizola assumiria o governo do Rio de Janeiro pela primeira vez, sem saber que seu futuro por muito pouco não foi interrompido no início dos anos 80.
"Eu recebi a ordem do coronel Freddie Perdigão de executá-lo quando ele saísse do apartamento em que morava, em Copacabana", afirma o ex-delegado do Departamento de Ordem Político Social (DOPS) do Espírito Santo, Cláudio Antônio Guerra. O plano, segundo Guerra, deveria implicar a Igreja Católica e os cubanos. A "tese de cobertura", nas palavras dele, era sustentar o assassinato com o argumento de que Brizola havia se apossado de dinheiro enviado por Cuba para fomentar a guerrilha no Brasil e comprado fazendas e gado no Uruguai.
Existe uma lenda entre a esquerda, que era alimentada pelas forças repressivas, de que Brizola havia ficado com parte do dinheiro que Cuba enviou para as guerrilhas. Porém, após a derrota da Guerrilha do Caparaó, em 1967, Brizola abandonou a estratégia dos focos guerrilheiros. Atribuem ao ex-presidente cubano, Fidel Castro, o apelido de "El Ratón" dado ao político gaúcho. Porém, o desvio nunca foi comprovado e Brizola sempre negou a acusação.
"Fui vestido de padre e ia executá-lo com uma pistola .45, pois era a arma preferida dos cubanos", recorda Guerra, que contou essa história pela primeira vez em depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, no livro Memórias de uma guerra suja (Topbooks, 2012). Guerra lembra que chegou à portaria do prédio em que Brizola morava e ficou conversando com o porteiro. Esperou por 15 minutos, mas como Brizola não desceu e nem saiu da garagem de carro, ele ligou para o coronel Perdigão, cujo codinome era Doutor Flávio, e que foi um dos mais cruéis torturadores do regime militar. "Ele mandou abortar e ir embora", recorda Guerra.
O ex-delegado, que, depois de ser preso acusado de vários crimes, se converteu e hoje prega em uma igreja evangélica, disse que houve um acordo e o plano falhou. "Se ele (Brizola) fosse assassinado causaria uma revolta muito grande. A sociedade civil ficaria revoltada com a esquerda. Tudo que era feito tinha o objetivo de desastabilizar o país para não ter a abertura", afirma Guerra.
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