O século de Octavio
João Paulo
Estado de Minas: 29/03/2014
Um homem que assumiu na carne os destinos de seu país, da poesia e de seu tempo. Que escreveu alguns dos mais importantes poemas do século 20, que refletiu sobre a identidade latino-americana com método e profundidade pouco comuns, que ajudou o Ocidente a compreender a dinâmica cultural da Índia e do Japão. Um criador alimentado pela inteligência crítica, que refletiu sobre a poesia de forma poética e que percorreu com radicalidade – não sem contradições – os tortuosos caminhos da política. Que, ao fim da vida, revelou a dupla chama do amor e do erotismo. O dono de vida tão intensa e universal, o escritor e pensador mexicano Octavio Paz (1914-1998) faria 100 anos na segunda-feira.
Numa era de excessiva tendência à especialização, Paz foi um dos raros exemplos de humanista capaz de dedicar-se a todo o espectro de interesse humano. Dono de cultura ampla e universal, era ainda dotado de curiosidade que o levava a ir da estética à política, das questões morais aos mitos, das investigações da ciência aos dilemas da arte. Além da inteligência, era também tocado pela graça da criação, com uma obra poética que influenciou escritores muito além do México, chegando ao Brasil, com destaque para os irmãos Campos. Haroldo, que colaborou em várias publicações dirigidas por Paz, foi tradutor do poeta mexicano, editando no Brasil Transblanco, a partir do longo poema Blanco.
O que chama a atenção na obra de Octavio Paz, no entanto, é exatamente a capacidade de reunir tantos interesses sob um domínio comum, quase um método pessoal, que alimenta a reflexão de poesia e a criação lírica de inteligência. Há sempre um eu, um ponto de partida, um jeito pessoal, quase confessional, de se aproximar das pessoas, das ideias e do mundo. Paz não vê o mundo de fora. Isso ajuda a entender ainda sua vocação para a política, seu interesse nas questões de seu tempo e de seu país e, no sentido mais amplo, da América Latina como uma comunidade de destinos compartilhados a partir de um passado de violências execráveis.
Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1990, de certa forma ele se tornou para o mundo um intérprete autorizado da consciência de seu país. De fato, entre as obras de Paz, a mais conhecida e influente, O labirinto da solidão, publicada em 1950, segue a linha dos livros de pesquisa da identidade nacional, com método e estilo que ainda hoje encantam e fazem pensar. Trata-se de um gênero fortemente ligado à América Latina e ao seu destino, tendo no Brasil exemplos como Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda (Silviano Santiago escreveu um livro, As raízes e o labirinto da América Latina, em que analisa de forma comparativa e complementar os ensaios de Sérgio e Octavio).
O labirinto da solidão, que ganha nova edição pela Cosac Naify, tem como propósito compreender o mexicano. O que hoje parece meio deslocado no tempo – a literatura da busca da identidade – era talvez a mais profunda das questões postas aos latino-americanos, a meio do caminho entre as próprias raízes e a inserção num mundo do qual faziam parte sempre de forma subsidiária e enviesada. Octavio Paz quer pegar com a mão os motivos históricos e psicológicos que definem o homem de seu país. Sua mais importante matéria é a herança cultural, o laço particular que une o mexicano ao seu destino. Para isso, o ensaísta escolhe seu tipo ideal, o “pachuco”, o pária, o excluído, aquele que preserva na alma o que o colonialismo tentou extirpar.
Alimentado por mitos, narrativas simbólicas e interpretação inusitada e rica, o ensaio vai operando para desfazer as máscaras que toldam a percepção do que é ser mexicano. Logo no início do livro, Octavio Paz reconhece no mexicano um homem fechado, defeso, silencioso, que tem respeito e temor de certas palavras e expressões, entre elas as chulas e os xingamentos. Para o ensaísta, o México moderno padece de uma reserva em relação às suas origens violentas, sobretudo a violação de indígenas pelo conquistador. Filhos da Malinche (a amante de Cortés e símbolo das mulheres violentadas), os mexicanos seriam fruto da violência inominável contra seus mais profundos valores humanos. A saída foi resguardar-se atrás de uma máscara. O labirinto da solidão é um instrumento feito para arrancar máscaras, ainda que das feridas jorrem sangue.
A interpretação da história real e simbólica de seu país e de seus irmãos dá ao livro uma força de revelação intelectual e de redenção política. Cada momento da história mexicana tem a dupla face da submissão (das tradições, crenças e deuses) e da revolta (por meio das rupturas reais da Independência e da Revolução Mexicana e até, em fato posterior ao livro, da revolta estudantil do fim dos anos 1960). Se há um acento político libertário, ele não foi suficiente para preservar Octavio Paz dos ataques da esquerda, que o perseguiria até o fim da vida, sobretudo por sua defesa do Partido Revolucionário Institucional, o PRI, que atravessou o século no poder.
Homem revoltado A relação de Paz com a esquerda nunca foi fácil. Sem nunca ter sido comunista, num período de alinhamento de muitos intelectuais com o partido, Paz foi crítico do stalinismo, dirigiu revistas literárias que se batiam contra a censura ideológica e defendiam o pluralismo, e nunca aceitou o dilema que parecia deixar apenas uma resposta para a contradição entre fascismo e comunismo. Sua posição, nesse sentido, talvez se aproxime da de Albert Camus e de seu “homem revoltado”, também duramente atacada. Paz foi ainda crítico dos rumos da revolução cubana (e de sua perseguição aos escritores), o que acabou por carimbar para sempre o selo de reacionário em sua identidade política.
No entanto, além das ideias, Paz deu provas de sua defesa da liberdade em atos corajosos. Em 1968, por exemplo, quando era embaixador de seu país na Índia, ele romperia com o PRI e se afastaria do cargo em razão da violenta repressão aos estudantes em Tlateloco. Sua atitude, e a coragem em levá-la a todos os debates, mostrou uma coerência que ia além das estratégias meramente partidárias ou das definições ideológicas. Nos termos de seu livro mais célebre, a revolta estudantil apontou a derrubada de mais uma máscara da violência, desta vez amparada na retórica do partido no poder. Para se manter coerente com suas ideias, Paz rompeu com a conveniência de sua situação pessoal.
A política levaria o pensador a outros esforços de interpretação da mutante realidade de seu país, da América Latina e do mundo. Em O ogro filantrópico, reunião de ensaios sobre questões políticas, Octavio Paz, no texto que dá nome ao livro, analisa as proposta de reforma política em discussão no México no fim dos anos 1970. Uma lúcida visão do autoritarismo latino-americano, em sua incapacidade de avançar até os mais simples valores da modernidade política, traz observações sobre o papel e composição do Estado que parecem escritas hoje, para situações muito próximas da realidade brasileira: “Característica notável do Estado mexicano: apesar de ter sido agente principal da modernização, ele mesmo não conseguiu se modernizar inteiramente. Em muitos aspectos, sobretudo no trato com o público e na maneira de conduzir os assuntos, continua sendo patrimonialista”.
A análise política de Paz não se circunscreveu apenas aos temas mexicanos. Tanto O ogro filantrópico como Tempo nublado trazem ensaios e artigos sobre questões referentes aos Estados Unidos, União Soviética, Irã e Israel. Num exercício de análise histórica, que amplia o olhar além da conjuntura, o ensaísta trabalhou com temas como participação dos intelectuais na arena pública, a crítica ao terrorismo e o renascimento das culturas locais.
O ensaísta Octavio Paz deixou ainda livros preciosos sobre a Índia, país em que serviu como diplomata e cuja cultura conhecia em profundidade. Escreveu sobre religião, misticismo, filosofia e, de forma desimpedida, sobre o corpo e os prazeres sob a ótica oriental, com sua alquimia sexual e cortesia erótica. Foi também estudioso atento da cultura japonesa e, sobretudo, de sua poesia, trazendo para o Ocidente um novo horizonte lírico, que dialogava com seu conhecimento da tradição e das vanguardas.
Sem nunca deixar esgotar seu interesse pelos temas da poesia e da política, da beleza e da arte da convivência, dos imperativos da estética e das cobranças da ética, Octavio Paz se debruçou ainda em estudos de antropologia e etnologia, tendo escrito um pequeno e luminoso livro sobre a obra do estruturalista Claude Lévi-Strauss, O novo festim de Esopo. Tudo que é excessivamente formal e quase impenetrável na lógica dos mitos de Lévi-Strauss se reveste de um interesse humano próximo, na busca do lugar do homem no sistema da natureza.
Amor e erotismo Depois de lançar a obra que talvez seja sua mais profunda realização, Soror Juana Inês de la Cruz – As armadilhas da fé, sobre a religiosa e poeta barroca do século 17 mexicano, misto de biografia, ensaio histórico, reflexão filosófica e pesquisa literária, Octavio Paz resolve se dedicar ao maior e mais universal de todos os dilemas, o amor. Seu livro A dupla chama – Amor e erotismo, escrito já na altura dos 80 anos, traz de novo à cena a relação sempre presente de poesia e erotismo. Passeando pela história, mitos e pela própria existência, o poeta dá as mãos ao humanista para falar do amor com quem se pacifica das tribulações da vida. O fogo da paixão e do erotismo, com sua chama vermelha, revela a sustentação do brilho azul do amor. “Pelo amor, vislumbramos nesta vida, a outra.”
Em seu Dicionário amoroso da América Latina, o colega de Nobel, o peruano Mario Vargas Llosa, escreveu: “Paz viveu mais de 84 anos, mergulhado no turbilhão de seu tempo e devorado até o fim por uma curiosidade juvenil. Participou de todos os grandes debates históricos e culturais, movimentos estéticos ou revoluções artísticas, sempre se engajando e explicando suas escolhas em ensaios de estilo e lucidez brilhantes. Não foi um diletante nem uma simples testemunha, foi sempre atuante, apaixonado pelo que se passava ao seu redor, sem nunca temer estar na contracorrente e enfrentar a impopularidade”.
Paz é um dos maiores poetas do século 20. Foi também um de seus pensadores mais corajosos e honestos. Não se pode querer mais de um humanista: ser universal na mais pessoal das manifestações da alma e sincero no território onde a verdade é reformada a cada estação. Para Paz, poesia e política eram manifestações do homem em suas possibilidades e contradições.
O centenário é sempre uma provocação para um olhar prospectivo, para aquilo que vai permanecer além do tempo. Às vezes, no entanto, em vez de olhar o que fica de um homem, talvez seja melhor examinar como viveu, essa temporalidade que não permite mistificação. Octavio Paz foi poeta e pensador que enfrentou o labirinto da solidão com suas armas e que convida seus leitores a fazer o mesmo. Ainda que o labirinto não tenha saída.
João Paulo
Estado de Minas: 29/03/2014
O mexicano Octavio Paz faz parte dos grandes intérpretes da identidade latino-americana |
Um homem que assumiu na carne os destinos de seu país, da poesia e de seu tempo. Que escreveu alguns dos mais importantes poemas do século 20, que refletiu sobre a identidade latino-americana com método e profundidade pouco comuns, que ajudou o Ocidente a compreender a dinâmica cultural da Índia e do Japão. Um criador alimentado pela inteligência crítica, que refletiu sobre a poesia de forma poética e que percorreu com radicalidade – não sem contradições – os tortuosos caminhos da política. Que, ao fim da vida, revelou a dupla chama do amor e do erotismo. O dono de vida tão intensa e universal, o escritor e pensador mexicano Octavio Paz (1914-1998) faria 100 anos na segunda-feira.
Numa era de excessiva tendência à especialização, Paz foi um dos raros exemplos de humanista capaz de dedicar-se a todo o espectro de interesse humano. Dono de cultura ampla e universal, era ainda dotado de curiosidade que o levava a ir da estética à política, das questões morais aos mitos, das investigações da ciência aos dilemas da arte. Além da inteligência, era também tocado pela graça da criação, com uma obra poética que influenciou escritores muito além do México, chegando ao Brasil, com destaque para os irmãos Campos. Haroldo, que colaborou em várias publicações dirigidas por Paz, foi tradutor do poeta mexicano, editando no Brasil Transblanco, a partir do longo poema Blanco.
O que chama a atenção na obra de Octavio Paz, no entanto, é exatamente a capacidade de reunir tantos interesses sob um domínio comum, quase um método pessoal, que alimenta a reflexão de poesia e a criação lírica de inteligência. Há sempre um eu, um ponto de partida, um jeito pessoal, quase confessional, de se aproximar das pessoas, das ideias e do mundo. Paz não vê o mundo de fora. Isso ajuda a entender ainda sua vocação para a política, seu interesse nas questões de seu tempo e de seu país e, no sentido mais amplo, da América Latina como uma comunidade de destinos compartilhados a partir de um passado de violências execráveis.
Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1990, de certa forma ele se tornou para o mundo um intérprete autorizado da consciência de seu país. De fato, entre as obras de Paz, a mais conhecida e influente, O labirinto da solidão, publicada em 1950, segue a linha dos livros de pesquisa da identidade nacional, com método e estilo que ainda hoje encantam e fazem pensar. Trata-se de um gênero fortemente ligado à América Latina e ao seu destino, tendo no Brasil exemplos como Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda (Silviano Santiago escreveu um livro, As raízes e o labirinto da América Latina, em que analisa de forma comparativa e complementar os ensaios de Sérgio e Octavio).
O labirinto da solidão, que ganha nova edição pela Cosac Naify, tem como propósito compreender o mexicano. O que hoje parece meio deslocado no tempo – a literatura da busca da identidade – era talvez a mais profunda das questões postas aos latino-americanos, a meio do caminho entre as próprias raízes e a inserção num mundo do qual faziam parte sempre de forma subsidiária e enviesada. Octavio Paz quer pegar com a mão os motivos históricos e psicológicos que definem o homem de seu país. Sua mais importante matéria é a herança cultural, o laço particular que une o mexicano ao seu destino. Para isso, o ensaísta escolhe seu tipo ideal, o “pachuco”, o pária, o excluído, aquele que preserva na alma o que o colonialismo tentou extirpar.
Alimentado por mitos, narrativas simbólicas e interpretação inusitada e rica, o ensaio vai operando para desfazer as máscaras que toldam a percepção do que é ser mexicano. Logo no início do livro, Octavio Paz reconhece no mexicano um homem fechado, defeso, silencioso, que tem respeito e temor de certas palavras e expressões, entre elas as chulas e os xingamentos. Para o ensaísta, o México moderno padece de uma reserva em relação às suas origens violentas, sobretudo a violação de indígenas pelo conquistador. Filhos da Malinche (a amante de Cortés e símbolo das mulheres violentadas), os mexicanos seriam fruto da violência inominável contra seus mais profundos valores humanos. A saída foi resguardar-se atrás de uma máscara. O labirinto da solidão é um instrumento feito para arrancar máscaras, ainda que das feridas jorrem sangue.
A interpretação da história real e simbólica de seu país e de seus irmãos dá ao livro uma força de revelação intelectual e de redenção política. Cada momento da história mexicana tem a dupla face da submissão (das tradições, crenças e deuses) e da revolta (por meio das rupturas reais da Independência e da Revolução Mexicana e até, em fato posterior ao livro, da revolta estudantil do fim dos anos 1960). Se há um acento político libertário, ele não foi suficiente para preservar Octavio Paz dos ataques da esquerda, que o perseguiria até o fim da vida, sobretudo por sua defesa do Partido Revolucionário Institucional, o PRI, que atravessou o século no poder.
Homem revoltado A relação de Paz com a esquerda nunca foi fácil. Sem nunca ter sido comunista, num período de alinhamento de muitos intelectuais com o partido, Paz foi crítico do stalinismo, dirigiu revistas literárias que se batiam contra a censura ideológica e defendiam o pluralismo, e nunca aceitou o dilema que parecia deixar apenas uma resposta para a contradição entre fascismo e comunismo. Sua posição, nesse sentido, talvez se aproxime da de Albert Camus e de seu “homem revoltado”, também duramente atacada. Paz foi ainda crítico dos rumos da revolução cubana (e de sua perseguição aos escritores), o que acabou por carimbar para sempre o selo de reacionário em sua identidade política.
No entanto, além das ideias, Paz deu provas de sua defesa da liberdade em atos corajosos. Em 1968, por exemplo, quando era embaixador de seu país na Índia, ele romperia com o PRI e se afastaria do cargo em razão da violenta repressão aos estudantes em Tlateloco. Sua atitude, e a coragem em levá-la a todos os debates, mostrou uma coerência que ia além das estratégias meramente partidárias ou das definições ideológicas. Nos termos de seu livro mais célebre, a revolta estudantil apontou a derrubada de mais uma máscara da violência, desta vez amparada na retórica do partido no poder. Para se manter coerente com suas ideias, Paz rompeu com a conveniência de sua situação pessoal.
A política levaria o pensador a outros esforços de interpretação da mutante realidade de seu país, da América Latina e do mundo. Em O ogro filantrópico, reunião de ensaios sobre questões políticas, Octavio Paz, no texto que dá nome ao livro, analisa as proposta de reforma política em discussão no México no fim dos anos 1970. Uma lúcida visão do autoritarismo latino-americano, em sua incapacidade de avançar até os mais simples valores da modernidade política, traz observações sobre o papel e composição do Estado que parecem escritas hoje, para situações muito próximas da realidade brasileira: “Característica notável do Estado mexicano: apesar de ter sido agente principal da modernização, ele mesmo não conseguiu se modernizar inteiramente. Em muitos aspectos, sobretudo no trato com o público e na maneira de conduzir os assuntos, continua sendo patrimonialista”.
A análise política de Paz não se circunscreveu apenas aos temas mexicanos. Tanto O ogro filantrópico como Tempo nublado trazem ensaios e artigos sobre questões referentes aos Estados Unidos, União Soviética, Irã e Israel. Num exercício de análise histórica, que amplia o olhar além da conjuntura, o ensaísta trabalhou com temas como participação dos intelectuais na arena pública, a crítica ao terrorismo e o renascimento das culturas locais.
O ensaísta Octavio Paz deixou ainda livros preciosos sobre a Índia, país em que serviu como diplomata e cuja cultura conhecia em profundidade. Escreveu sobre religião, misticismo, filosofia e, de forma desimpedida, sobre o corpo e os prazeres sob a ótica oriental, com sua alquimia sexual e cortesia erótica. Foi também estudioso atento da cultura japonesa e, sobretudo, de sua poesia, trazendo para o Ocidente um novo horizonte lírico, que dialogava com seu conhecimento da tradição e das vanguardas.
Sem nunca deixar esgotar seu interesse pelos temas da poesia e da política, da beleza e da arte da convivência, dos imperativos da estética e das cobranças da ética, Octavio Paz se debruçou ainda em estudos de antropologia e etnologia, tendo escrito um pequeno e luminoso livro sobre a obra do estruturalista Claude Lévi-Strauss, O novo festim de Esopo. Tudo que é excessivamente formal e quase impenetrável na lógica dos mitos de Lévi-Strauss se reveste de um interesse humano próximo, na busca do lugar do homem no sistema da natureza.
Amor e erotismo Depois de lançar a obra que talvez seja sua mais profunda realização, Soror Juana Inês de la Cruz – As armadilhas da fé, sobre a religiosa e poeta barroca do século 17 mexicano, misto de biografia, ensaio histórico, reflexão filosófica e pesquisa literária, Octavio Paz resolve se dedicar ao maior e mais universal de todos os dilemas, o amor. Seu livro A dupla chama – Amor e erotismo, escrito já na altura dos 80 anos, traz de novo à cena a relação sempre presente de poesia e erotismo. Passeando pela história, mitos e pela própria existência, o poeta dá as mãos ao humanista para falar do amor com quem se pacifica das tribulações da vida. O fogo da paixão e do erotismo, com sua chama vermelha, revela a sustentação do brilho azul do amor. “Pelo amor, vislumbramos nesta vida, a outra.”
Em seu Dicionário amoroso da América Latina, o colega de Nobel, o peruano Mario Vargas Llosa, escreveu: “Paz viveu mais de 84 anos, mergulhado no turbilhão de seu tempo e devorado até o fim por uma curiosidade juvenil. Participou de todos os grandes debates históricos e culturais, movimentos estéticos ou revoluções artísticas, sempre se engajando e explicando suas escolhas em ensaios de estilo e lucidez brilhantes. Não foi um diletante nem uma simples testemunha, foi sempre atuante, apaixonado pelo que se passava ao seu redor, sem nunca temer estar na contracorrente e enfrentar a impopularidade”.
Paz é um dos maiores poetas do século 20. Foi também um de seus pensadores mais corajosos e honestos. Não se pode querer mais de um humanista: ser universal na mais pessoal das manifestações da alma e sincero no território onde a verdade é reformada a cada estação. Para Paz, poesia e política eram manifestações do homem em suas possibilidades e contradições.
O centenário é sempre uma provocação para um olhar prospectivo, para aquilo que vai permanecer além do tempo. Às vezes, no entanto, em vez de olhar o que fica de um homem, talvez seja melhor examinar como viveu, essa temporalidade que não permite mistificação. Octavio Paz foi poeta e pensador que enfrentou o labirinto da solidão com suas armas e que convida seus leitores a fazer o mesmo. Ainda que o labirinto não tenha saída.
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