Corrupção e ditadura
Roubo da riqueza social tem como
fundamento o desprezo com o cidadão e com a democracia. Nos governos
militares, sem liberdade, o descaso com coisa pública era endêmico na
máquina estatal
Rubens Goyatá Campante
Estado de Minas: 19/04/2014Com sua vassourinha moralista, Jânio Quadros usou o combate à corrupção como mote da campanha que o levou à presidência em 1960 |
A corrupção é o tema do momento. Partidos e forças políticas acusam os malfeitos de adversários e disputam, junto à opinião pública e ao eleitorado, quem é considerado mais ou menos corrupto. A imprensa, alçada ao papel de justiceira no vácuo da ineficiência dos sistemas político e jurídico em proteger o interesse público, traz casos e mais casos de corrupção, publicando-os e enfatizando-os de acordo com suas próprias conveniências e preferências ideológicas. E 64% dos brasileiros, segundo pesquisa de dois anos atrás feita pela ONG Transparência Internacional, pensam que a corrupção tem aumentado. É por isso, certamente, que tem se ouvido, cada vez mais, a opinião de que “na época da ditadura, pelo menos, não tinha corrupção”. Ideia absolutamente equivocada, fruto da desinformação histórica ou, pior ainda, de tendências antidemocráticas.
O combate à corrupção tem sido uma das mais recorrentes justificativas para a implantação de ditaduras, as quais, no poder, transformam-se rapidamente, quase instantaneamente, em regimes onde a ladroagem campeia. Isso não quer dizer, de maneira alguma, que não se deva lutar contra a corrupção, já que a consequência seria uma ditadura. Significa que essa luta só é eficiente por meio da transparência democrática. Os países menos corruptos do mundo são democracias, não só no sentido formal, por possuírem partidos, eleições regulares etc., mas no sentido substantivo, de que suas populações são respeitadas como cidadãos – se não plenamente, ao menos em nível razoável e maior que nos países de democracia inexistente ou meramente formal.
Nossa história é um exemplo perfeito dessa convergência entre o desrespeito ao cidadão, típico das ditaduras, e o desrespeito com a coisa pública. Sabe-se que, além do anticomunismo da época da Guerra Fria, um dos motes do golpe de 1964 foi o combate à corrupção, vista de forma basicamente individual, referente somente à moralidade pessoal de um grupo específico de pessoas que eventualmente furtavam dinheiro público: os políticos e funcionários públicos. Além disso, para os militares que tomaram o poder em 1964, escudados pelo apoio de parte da sociedade, da política externa norte-americana e, principalmente, do grande capital nacional e internacional, a corrupção e a “baderna” (expressão que os autoritários e conservadores brasileiros adoram até hoje) dos sindicalistas e comunistas estariam ligadas entre si, e seriam insufladas por governos “populistas” e “demagogos”, como os de Vargas, Juscelino e João Goulart. “As denúncias contra a corrupção conferiam destaque à máquina sindical corporativista criada por Vargas”, lembra o professor de história da UFMG Rodrigo Patto Sá Mota, “essa avaliação do impacto eleitoral da ‘máquina’ varguista, algo exagerada, servia de justificativa e consolo para as derrotas da UDN e explicava as grandes votações colhidas pelos candidatos de orientação trabalhista”.
Em 1960, Jânio Quadros, apoiado pela UDN, elegeu-se tendo como símbolo a vassoura que iria “varrer a bandalheira”, mas, com sua renúncia precoce e a posse de seu vice, João Goulart, voltava, na ótica dos militares e dos udenistas, a velha dobradinha corrupção-subversão, que a “revolução” de 1964 prometeu eliminar de pronto – bastaria determinação e exemplo pessoal dos governantes. Foi logo criada a CGI (Comissão Geral de Investigações), com a missão de investigar e punir casos de corrupção e subversão em processos de rito sumário. Com amplos poderes, a CGI promoveu milhares de inquéritos, expurgos, prisões. Mas, alguns meses após sua instalação, Castelo Branco afirmava que o problema mais grave do Brasil não era a subversão, mas a corrupção, “muito mais difícil de caracterizar, punir e combater”.
O que Castelo começou a perceber foi que a abordagem individualista da corrupção é reducionista, e, portanto, insuficiente para atacá-la. É claro que a corrupção nunca deixa de ter um componente de decisão individual, mas tem também, ao mesmo tempo e de forma inarredável, um componente estrutural e sistêmico. As dificuldades que os militares encontraram ao operar sob a perspectiva individualista e reducionista do problema foram bem ilustradas no caso de JK: perseguido pelo regime, o ex-presidente teve a vida esquadrinhada pela CGI na tentativa de se mostrar seu envolvimento pessoal em ligações com o Partido Comunista e com o desvio de dinheiro público – a dobradinha subversão-corrupção. Nada foi provado, apesar dos inúmeros interrogatórios a que foi submetido. O objetivo não eram os focos estruturais de corrupção porventura existentes no governo JK, mas a tentativa, malograda, de demonstrar sua desonestidade particular.
Mas a corrupção sistêmica eventualmente presente nos âmbitos da administração JK foi desconsiderada não só por isso não estar no horizonte dos militares, mas também porque traria o inconveniente de implicar vários políticos, funcionários públicos e empresários que eram, agora, aliados da ditadura. E esse foi outro limite da cruzada moralizadora castrense: acercar-se do poder para usufruir suas benesses, de preferência o mais discretamente possível, é tendência congênita de alguns políticos, funcionários públicos e empresários, aqui e alhures. E o regime militar logo passou a conviver com aqueles “apoiadores” totalmente dispostos a fazer parte de qualquer governo, não importando sua tendência política – aliás, se a tendência for a de reprimir a oposição e amordaçar a imprensa, tanto melhor para se dedicarem tranquilos a seus ricos negocinhos.
E os negócios cresceram, e junto deles a administração pública, e junto dela o número de oficiais das Forças Armadas em postos-chave nos ministérios e empresas estatais. Sob o regime militar, a economia brasileira expandiu-se de forma expressiva, especialmente até o final de década de 1970. Um capitalismo regulado autocraticamente pelo Estado, cujo modelo incluía concentração de renda, protecionismo econômico, investimento estatal direto e indireto e, especialmente, favorecimento ao grande capital nacional e internacional, particularmente ao setor financeiro. “Na ditadura, quem peou a vaca foram os militares, mas quem a ordenhou mesmo foram os grandes interesses econômicos nacionais e internacionais” – o chiste de Brizola resume bem a situação.
Mordaça
Assim, com os grandes projetos de crescimento econômico, exaltados como a construção do “Brasil grande”, com as grandes obras, com o incremento das operações do sistema financeiro, foram surgindo as enormes oportunidades de negócios – e, por vezes, de negociatas. Contestar tais projetos, obras e negócios era contestar a pátria, era subversão. Poucos escândalos de corrupção conseguiam driblar a censura e o amordaçamento da oposição e das vozes dissidentes.
Mesmo assim, alguns vieram a lume, quando não em todos os seus detalhes e implicações, devido às dificuldades da livre expressão, pelo menos em alusões e referências. Casos como as denúncias de superfaturamentos na construção da ponte Rio-Niterói e da Transamazônica, ou as quebras suspeitas de corretoras de valores, como a Coroa-Brastel, ou de entidades de poupança privada, como o grupo Delfin, ou de fundos de previdência privada, como a Capemi. Em todos, o prejuízo direto ficava com os respectivos investidores, depositantes e contribuintes, e o indireto, com a sociedade, já que os rombos eram absorvidos pelo erário público – a famigerada socialização de prejuízos do grande capital, especialmente do financeiro, que ocorreu também nos episódios das falências do Grupo Halles e do Banco União Comercial, entre outros. E os escândalos chegavam, inclusive, à imprensa internacional: a revista alemã Der Spiegel denunciou, em amplas reportagens, na década de 1970, os subornos pagos a altos integrantes do governo brasileiro que negociaram o Tratado de Cooperação Nuclear com o governo alemão.
Por conta destes acontecimentos, e provavelmente de tantos outros não ventilados, o presidente Geisel, segundo livro do historiador mineiro Ronaldo Costa Couto, confidenciou a um interlocutor: “A corrupção nas Forças Armadas está tão grande que a única solução para o Brasil é fazer a abertura”. Geisel, como outros generais presidentes da República, aferrava-se à visão individualista e reducionista de que a corrupção esgotava-se na questão da decência estritamente particular do governante, de que bastava o “exemplo” deste para que a sociedade, a economia e a política fossem, num passe de mágica, expurgadas daquele mal. Mantiveram, assim, os presidentes militares, uma postura de lisura pessoal – fossem julgados especificamente quanto a isso, como JK, também seriam inocentados.
Mas eles comandavam governos em que as relações entre os altos escalões do poder político e do poder econômico se davam sem a mínima transparência e o mínimo controle por parte da sociedade, em que não havia que se dar satisfações a essa, pois era vista como incapaz e merecedora de tutela – portas abertas para o aviltamento do interesse público. Sua noção de interesse público, porém, era a da modernização econômica, material, da sociedade a ferro e fogo, a do patriotismo ufanista, eivado de discursos de exaltação ao consenso, à ordem, à hierarquia social e de ódio aos que, em seu entender, ameaçavam esses valores, ódio que embasou a tortura como política de Estado. Ao mesmo tempo, sob a bênção de seus governos, o capitalismo selvagem, do “salve-se quem puder”, contaminava a sociedade e a cultura e produzia, como lembra Luiz Werneck Vianna, “verdadeira lesão no tecido social, aprofundando a atitude de indiferença política e dificultando, pela perversão individualista, a passagem do indivíduo ao cidadão”.
O poder político, econômico e ideológico respeita cidadãos, e não indivíduos perdidos em sua fragmentação e ignorância. Respeito ao cidadão pressupõe democracia, faltando este respeito, a corrupção fatalmente se instala, pois sua causa fundamental é a disparidade aguda de recursos entre as pessoas. Não é da natureza humana, salvo raras exceções, refrear espontaneamente o poder de que se desfruta, o poder de um ser humano só é realmente limitado pelo poder de outro ser humano. Se alguns poucos donos do poder fazem o que bem entendem e estabelecem regras favoráveis a si, ou, caso essas regras sejam universalistas, driblam-nas tranquilamente, aí está a corrupção. Como no Brasil da ditadura militar, como no Brasil de hoje.
. Rubens Goyatá Campante é doutor em sociologia política e pesquisador do Núcleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT da 3ª Região.
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