sábado, 19 de abril de 2014

Tão perto, tão longe

Tão perto, tão longe Livro sobre história da América Latina é guia seguro para quem quer se aventurar no conhecimento de uma região marcada por conflitos


Ângela Faria
Estado de Minas: 19/04/2014



Cantora Mercedes Sosa: voz que traduziu a alma da América Latina em canções engajadas (Pavel Wolberg/Reuters)
Cantora Mercedes Sosa: voz que traduziu a alma da América Latina em canções engajadas

Obcecado pelo que se convencionou chamar de Primeiro Mundo – Europa e Estados Unidos são nossas eternas “fontes de imitação” –, o brasileiro mal disfarça certo desdém pela África e pela América Latina. Se mais recentemente figuras como o político Hugo Chávez, a blogueira Yoáni Sánchez, o maestro Gustavo Dudamel, o ditador Hosni Mubarak e os músicos Fela Kuti e Salif Keita entraram em nossa casa pela TV ou iPod, pouco – ou quase nada – se sabe por aqui de latino-americanos e africanos além de figurinhas carimbadas como Che Guevara, Fidel Castro, Evita ou Nelson Mandela.

A coleção História na universidade (Editora Contexto) lançou dois livros para quem está disposto a trocar clichês e preconceito pela tentativa de começar a compreender, realmente, a complexidade da América Latina e da África. Ambos oferecem abordagens panorâmicas e articuladas inteligentemente, convidando a leituras posteriores mais aprofundadas. A Contexto honra – com louvor – o espírito da coleção Primeiros passos, saudosa publicação da Editora Brasiliense que abriu o mundo a gerações de jovens.

Professoras da Universidade de São Paulo (USP), Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino dedicam 206 páginas a países das Américas. Você sabia que o Haiti foi a primeira colônia latino-americana a se tornar independente da metrópole, a França, e o primeiro Estado da região a abolir a escravidão? Você sabia que a Revolução Mexicana, ao final de 10 anos, deixou o saldo de quase 1 milhão de pessoas mortas em combates e por doenças como o tifo e a gripe espanhola? Você sabia que educação e cultura foram as estratégias de paz para manter coesa a nação mexicana? E que o Equador foi o primeiro país da região a conceder o voto às mulheres?

História da América Latina não é almanaque cheio de ilustrações. Facilita a vida do leitor, mas está longe de ser um fast book. Chega a impressionar o volume de informações que o pequeno volume traz, aproximando-nos de Tupac Amaru, Simón Bolívar, Pancho Villa, Emiliano Zapata, José Carlos Mariátegui, Lázaro Cárdenas e José Martí, entre tantos outros hermanos de quem ouvimos vagamente falar. As autoras não se prendem à ordem cronológica dos fatos. Propõem-se a entrelaçá-los, jogando luz sobre as raízes político-econômicas de momentos cruciais da trajetória latino-americana. Mostram também que eles reverberaram por toda a região – afetando o Brasil.

Foi assim com a revolta dos escravos no Haiti, no século 18, tão temida na colônia portuguesa; com a Revolução Cubana, no fim da década de 1950, que deflagrou a paranoia anticomunista; com a Revolução Mexicana, em 1910, inspiradora da luta nacionalista; e com a saga do libertador Simon Bolívar (1783-1830), guru do para lá de polêmico Hugo Chávez.

Conflitos marcaram a região, palco da Guerra do Paraguai, do embate entre México e Estados Unidos (que deu o Texas ao Tio Sam), da Guerra do Pacífico, opondo Chile, Peru e Bolívia (obrigada a abrir mão de seu litoral), e da contínua ofensiva dos EUA. Os Estados Unidos são onipresentes nesta história. Financiaram articulações nacionalistas para separar o Panamá da Colômbia, visando à construção do canal entre os oceanos Pacífico e Atlântico, além de bancar revoluções para garantir seus interesses econômicos e geopolíticos.

A profunda desigualdade social, a concentração de renda e a discriminação de indígenas, negros e mestiços atravessaram os séculos, fermentadas por forças colonialistas, imperialistas e globalizantes. Revoltas e repressão marcam a multifacetada história latino-americana. As autoras conduzem o leitor por esse complexo palco buscando driblar a armadilha da generalização. Praticamente cada país tem o seu quinhão neste livro.

O leitor se depara com momentos emblemáticos da saga hermana no século 20: da consolidação das repúblicas a ditaduras militares, passando por regimes populistas, movimentos de esquerda, grupos guerrilheiros e redemocratizações.

Maria Ligia e Gabriela dedicam espaço à cultura, mostrando como homens e mulheres traduziram o imaginário de momentos históricos e utopias: da Nueva Canción de Mercedes Sosa e do realismo fantástico de Gabriel García Márquez à Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, que o polêmico Hugo Chávez transformou em símbolo de seu governo.

As autoras encerram sua História da América Latina sem abordar temas importantes, como a conexão narcotráfico-política, ou se aprofundar um pouco mais sobre o fenômeno Hugo Chávez. Mais páginas seriam bem-vindas, pois a dupla comprovou ter fôlego para a missão. Mas elas não deixam de destacar desafios postos ao Estado contemporâneo. Um deles é a superação dos limites da democracia representativa. Votar não basta: tornou-se crucial ampliar a cidadania e a qualidade de vida da população, alcançar metas de desenvolvimento econômico, coibir a violência e a corrupção, além de promover ações com vista à justiça e à reparação em relação a crimes contra a humanidade cometidos por regimes autoritários.


 (Editora Contexto)

HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
• De Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino
• Editora Contexto
• 206 páginas, R$ 35

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