O Banco Imobiliário faliu
João Paulo
Estado de Minas: 19/04/2014Pelotão de choque em frente a um galão de agrotóxico, durante manifestação do MST em Brasília: quem defende a sociedade? |
Estamos sempre em transição. A crise deixou de ser um problema para ser uma condição de existência. A mudança é nossa única certeza.
Parece haver um consenso acerca da dinâmica social, com sua capacidade de puxar sempre o tapete e nos voltar o rosto para a realidade. No entanto, embora sejamos alimentados pela sensação de que tudo muda, são mantidos certos valores estáticos no campo da política que, de certa maneira, respondem pelo lugar desprestigiado que ela hoje ocupa na preocupação das pessoas. A política anda em baixa porque teima em falar do que não existe mais.
Talvez o grande esforço, hoje, para recuperar a importância do debate e da ação política seja exatamente a capacidade de habitar o mundo real. Em outras palavras, encarar o campo das incertezas e da crítica aos valores convencionais, que foram sendo construídos ao longo dos séculos. O maior dos desafios, quem sabe, está na transição em curso de uma concepção política baseada em grandes ideologias e projetos concentrados em partidos e projetos de poder em direção a um jogo mais ágil de movimentação social inspirado na transformação cultural e seus resultados plásticos e fluidos.
Sempre pareceu mais seguro interpretar o mundo a partir de grandes chaves compreensivas vindas da história, da sociologia e das ciências políticas. Luta de classes, liberalismo e democracia eram plataformas por meio das quais era possível fazer não apenas a descrição da situação vivida como apontar os caminhos mais consistentes de transformação e aprimoramento social. Era como se o tabuleiro do grande jogo da política estivesse dado e a ação fosse definida pelo movimento das peças e distribuição de bônus e cartas marcadas.
O primeiro alerta que virou o War ou o Banco Imobiliário de cabeça para baixo foi uma simples constatação espalhada aos quatro ventos do mundo: “Isso não nos representa”. As pessoas passaram a se sentir isoladas do campo das decisões, mas nem por isso queriam abrir mão de definir seus destinos. Ao reagir a um contexto do qual eram apenas objetos ou peças, passaram a desconfiar de todas as regras e a propor novos modelos de ação. A revivescência da desobediência civil é um dos belos sintomas desse processo de denúncia da inutilidade das antigas fórmulas e anúncio de novos padrões de comportamento. Por muito tempo a democracia vinha perdendo o viço pelo excessivo acento no polo do consenso. O retorno do conflito é boa notícia do nosso tempo.
É preciso prestar atenção nesse movimento. Em primeiro lugar, porque ele está redefinindo o campo da política. As pessoas que atuam de forma direta na arena pública com seu protesto, indignação e atitude não estão em busca de eco no núcleo do poder, para com isso concretizar suas demandas. O sistema tradicional parecia inatacável em sua lógica de mobilizar a periferia para manter o centro. Toda ação precisava ser incorporada a um projeto mais amplo de tomada de poder (pela força ou pelas urnas), que espalharia seus méritos de acordo com a representatividade dos grupos envolvidos na mudança.
Os movimentos sociais que emergiram com a sociedade organizada em rede – afora os momentos excepcionais de contestação das ditaduras, onde a unidade é um valor – têm como característica básica a diferenciação do aparelho do Estado pela afirmação de valores culturais particulares. Com isso, dificilmente vão se aliar a projetos de orientação eleitoral de forma mecânica. Recusam-se a ser manipulados, não vão passar cheque em branco a qualquer partido, não se dispõem mais a acreditar em projetos que adiem a realização de seus desejos além do tempo necessário. Nada de esperar o bolo crescer.
Impopular é palavrão Quem acompanha o atual debate eleitoral pode perceber uma tradução límpida desse divórcio na proposta de candidatos que têm vindo a público defender medidas impopulares. De tal forma nossa concepção tradicional de política é armada sobre projetos ideológicos que, para muitos, mais velhos ou mais experientes, de acordo com o grau de autoestima, isso parece fazer sentido. Embora apresentado como defesa das medidas populistas, que poderiam se mostrar danosas a longo prazo, na verdade o que se chama de impopular são propostas que reforçam a estrutura que permite que a sociedade se mantenha injusta, retirando de todos para capitalizar o setor financeiro de interesse localizado. Foi o mesmo argumento que tornou as políticas privatistas um valor incontestável nos anos 1980 para depois destruir todo o arcabouço da social democracia.
Numa democracia, que tem como origem e fim a ligação com o povo, as medidas impopulares deveriam ser um anátema, mas passam por ações responsáveis de pessoas ajuizadas. Em tal contexto, a primeira baixa vai ser exatamente a ideia de representação política: quem age assim não nos representa. A saída, pelo que se tem visto em todo o mundo, é o abandono (ou, no mínimo, a desconfiança) dessa via tradicional em favor do fortalecimento da ação direta. Protestos, manifestações, ações coletivas, ocupações e marchas têm se tornado um ativo cultural de grande significação democrática. A democracia não agoniza com orientação cultural da política, mas é elevada a novo patamar.
Exemplo eficaz de ação cultural que ganha forte substância política têm sido as manifestações de setores ligados ao movimento ecológico. No primeiro momento, tiveram sua vertente ambiental vampirizada pelo chamado desenvolvimento sustentável, em que o desenvolvimento é o substantivo qualificado pelo adjetivo sustentável. A gramática, como se vê, também é política. O que as novas intervenções vêm demonstrando é uma alteração da teoria democrática em favor do direito da minoria em enfrentar a maioria (ou a legalidade) em nome de danos maiores, previstos com ações que hoje conflitam com o campo da institucionalidade.
Em alguns momentos, e no Brasil temos experiências de grande êxito social como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Via Campesina e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), é preciso forçar os limites da propriedade privada para instaurar um campo mais consistente de justiça social. Quando se vive, como hoje, um regime de incerteza hídrica, por exemplo, ganha forte valor moral, político e técnico as ações que o MAB vem propondo há muitos anos, seja na defesa dos mananciais e/ou na mudança das matrizes energéticas. Assim como o MST, no que diz respeito ao uso de venenos na agricultura e de sementes geneticamente modificadas patenteadas por empresas estrangeiras.
O mesmo pode ser percebido em atitudes como o caso dos Seis de Kingsnorth (ação do Greenpeace que, em 2008, fechou uma termelétrica no Sudeste da Inglaterra), entre outras, que foram consideradas criminosas a princípio e depois levaram a mudanças expressivas – no caso, o fechamento da usina por danos ao bem-estar humano. Atitudes como essas parecem ser exemplos de uma transformação que muitas vezes vai além dos próprios movimentos que as geraram. Tanto as organizações de esquerda como o movimento ecológico aprenderam na prática a forma de criar novos modelos de representação. Além disso, da participação convencional ao novo militante, altamente informado, há um patamar de conquista pedagógica impressionante.
Mobilidade e envelhecimento Hoje, a inteligência não migra necessariamente para o capital. Há um movimento de ético que tem recrutado jovens cabeças e desenvolve projetos sofisticados e ousados em vários campos da vida social. De onde certamente deverão surgir as soluções para os grandes problemas da humanidade, todos eles a serem vividos no limite da sociedade de mercado: o envelhecimento da população, a mobilidade, a questão da água, o clima, a preservação do meio ambiente, a felicidade individual, a democratização real da comunicação – tarefas que apontam a margem não operacional do sistema capitalista ou comunista. As saídas para esses problemas, cada vez mais expressivos na vida das pessoas, certamente não serão bancadas com recursos de instituições públicas e privadas que, na maioria das vezes, se alimentam exatamente deles.
Na semana passada, para ficar em apenas mais um exemplo do divórcio entre as instituições clássicas e o novo paradigma de mobilização social, a entrevista concedida pelo ex-presidente Lula a blogueiros gerou uma onda de protestos entre os veículos tradicionais. Acostumados à lógica da primazia como canais de elocução de discursos sempre de mão única, o que fez com que se confundisse por décadas opinião pública de opinião publicada, os chamados “grandes meios” questionaram todo o processo. Segundo análises estampadas até mesmo em editoriais, a entrevista privilegiou veículos suspeitos de sintonia com o poder e financiados por ele na forma de propaganda.
A entrevista foi transmitida ao vivo e sem cortes. Todos os temas foram tratados. Os blogs tiveram o mesmo espaço para perguntas. Não houve seleção prévia de temas. Nenhum veículo foi destacado (até o papa Francisco cedeu ao lobby da exclusiva em sua visita ao Brasil…). São essas as questões que deveriam ter sido debatidas. No entanto, a queixa maior foi por se sentirem excluídos de uma festa da qual se acostumaram a expulsar os não convidados. Nesse aspecto, há que se destacar a capacidade de leitura da circulação de mensagens por parte dos responsáveis pela entrevista. Há uma inversão notável: a mensagem passa a valer mais que o meio, já que esse não carrega o custo da inversão intensiva de recursos ou vantagens legais de concessões. Na internet, o patrão é o usuário.
Quanto ao financiamento de blogs, que atire a primeira pedra os defensores da chamada “mídia técnica”. Afinal, em comunicação, a quantidade é um valor iluminista: todo mundo pode e deve saber tudo. Quem acha que os grandes jornais dominam audiência e consciências, precisa rever seus conceitos.
Daqui pra frente, tudo vai ser diferente. O que será que será, exatamente, ninguém sabe. É o lado bom de viver sempre em crise.
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