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Quando menos é mais
Depois de romances e coletâneas de histórias, escritor se arrisca no difícil gênero do miniconto
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 26/04/2014
Depois de romances e coletâneas de histórias, escritor se arrisca no difícil gênero do miniconto
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 26/04/2014
"Escrever essas histórias perversas foi a minha vingança contra as autoridades demoníacas que infestam as instituições públicas"
Ele já foi o escritor Nelson de Oliveira. Mas, de uns anos para cá, de comum acordo com o personagem, resolveu conceder a ele uma tranquila aposentadoria, sem maiores traumas, para transformar-se em Luiz Bras – um ficcionista nascido em Cobra Norato, no Mato Grosso do Sul, e que estudou letras na USP. Como se não bastasse, o irrequieto Nelson de Oliveira, que na realidade é de Guaíra, no interior de São Paulo, mas mora há muito tempo na capital, agora é também Valério de Oliveira, junto ao qual tem cometido ótimas poesias. Seu novo livro, Pequena coleção de grandes horrores, é de autoria pura e exclusiva de Luiz Bras.
Metamorfoses à parte, o que, aliás, não é uma coisa tão inusitada na literatura, certo é que Luiz Bras (antes já havia lançado o romance Sozinho no paraíso e o volume de contos Paraíso líquido), volta-se agora para o miniconto, gênero difícil, no qual se sai muito bem. É provável que tenha aprendido a escrever com Nelson de Oliveira.
Nas dezenas de histórias dessa nova coletânea, que nunca ultrapassam a uma página e meia (algumas têm poucas linhas), Luiz Bras escreve sobre temas variados, mas sempre voltado para a irreverência e loucura dos tempos modernos, nos quais as pessoas, definitivamente, parecem não se entender. Conflitos internos, solidão, corrupção e desmandos políticos, tudo está presente no livro. Em alguns textos, Luiz Bras, com ousadia calculada, se apropria de textos de autores famosos, como Kafka, Guimarães Rosa e Cervantes, e dá a eles seu toque pessoal, tudo com boa dose de humor e ironia. E quanto a Nelson de Oliveira, como ele tem convivido com Luiz Bras e Valério de Oliveira? “Somos uma pequena família feliz”, afirma.
Depois de bom tempo navegando nas águas do romance, você volta ao conto e lança Pequena coleção de grandes horrores. Por que a opção pelas histórias curtas?
Na verdade, não costumo ser fiel a um só gênero literário. Aprecio todos, especialmente o conto, o romance e o poema. Enquanto escrevia o romance Sozinho no deserto extremo, lançado há dois anos, escrevi muitos dos minicontos reunidos nesse novo livro. Também escrevi uns poucos poemas, para o próximo livro de meu alter ego Valério Oliveira. A escritura de um romance, por ser uma atividade de longo prazo, sempre deixa espaços para o exercícios das formas mais breves.
Nas suas histórias, os conflitos humanos surgem a cada momento, de forma crua, tansparente, sem muita piedade. Essa loucura toda é inerente ao ser humano?
Os 60 minicontos da Pequena coleção de grandes horrores são narrativas cruéis, de humor negro. Neles, a maioria dos vícios humanos é exposta e ridicularizada. Essa foi a maneira que encontrei de refletir literariamente sobre o mundo em que vivemos. Gosto demais, por exemplo, dos minicontos que tratam da corrupção na política brasileira. Escrever essas histórias perversas foi a minha vingança contra as autoridades demoníacas que infestam as instituições públicas.
Então a matéria-prima estava toda aí, ao redor? Como as histórias foram surgindo?
De muitas maneiras. Principalmente incitado pelo desejo de jogar com a linguagem literária. Muitos dos minicontos subvertem as regras gramaticais, convidando o leitor a fugir da rotina. Fazem uso do monólogo interior, da anáfora, da quebra sintática. Outros homenageiam livros e autores que eu admiro. Há uma pequena série que se apropria do início de narrativas famosas, como Dom Quixote, A metamorfose, Macunaíma, Lolita, Grande sertão: veredas e outras. Tudo com uma boa dose de ironia e humor.
Muitos andam apregoando que o conto anda em baixa, não vende. O que você está achando disso, já que resolveu investir?
Comercialmente, o romance tem se saído melhor. Hoje, as grandes editoras preferem publicar romances, até mesmo de baixa qualidade, porque sabem que o retorno financeiro será maior. Mas isso não significa que o conto, a crônica e o poema não estejam vivendo uma grande fase no Brasil. Critérios comerciais e estéticos raramente andam de mãos dadas. Num país em que há contistas do nível de Dalton Trevisan, um Rubem Fonseca, um Luiz Vilela e tantos outros, o conto jamais estará em baixa.
Há mais de 20 anos você organizou a antologia Geração 90: os transgressores, que na época deu o que falar. De lá para cá, como você tem visto a movimentação literária da nova geração? Muita gente escrevendo?
Muita gente. Dentro e fora do mainstream. Nos últimos meses, tive a sorte de esbarrar em quatro livros bastante inspirados, mas pouco comentados, de autores estreantes: Carne falsa, coletânea de contos da catarinense Patrícia Galelli; o romance Desabandono, do carioca Ricardo Josuá, e Remédio forte, coletânea de contos do baiano Gláuber Soares. Na poesia, não posso deixar de recomendar o livro de estreia da goiana Mariana Teixeira, Inversos paralelos, excelente.
Depois que Nelson de Oliveira se foi, como tem sido sua convivência com Luiz Bras e agora também com Valério Oliveira?
A convivência tem sido pacífica, sem atritos. Desde que Nelson de Oliveira aposentou-se da literatura e saiu do país, tudo ficou mais fácil. As disputas estéticas cessaram. Agora, eu divido o tempo com o poeta Valério Oliveira e o ilustrador Teodoro Adorno, que são alter egos menos competitivos. Somos uma pequena família feliz.
Nas ruínas do laboratório subterrâneo
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso – Estava deitado sobre as costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha – As inúmeras pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos – Sonhos intranquilos, costas duras como couraça, inúmeras pernas, que importância tem tudo isso? – Nenhuma, querido – Que é a vida? – Um frenesi – Que é a vida? – Uma ilusão, uma sombra, uma ficção – O maior bem é tristonho, porque toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são – Quando certa manhã você acordou metamorfeseado num inseto monstruoso, amorzinho, você demorou para lembrar & aceitar que jamais havia sido outra coisa – Deixe de bobagem, luz de minha existência – Nas ruínas do laboratório subterrâneo nunca existiu criatura que não fosse um inseto monstruoso – A medicina genérica e a engenharia genética universalizaram a metamorfose – Verdade & ilusão, conhecimento & ignorância agora são a mesma vertigem – Está ouvindo o imenso silêncio do universo? – Pare de estrebuchar, abra outra garrafa de vinho e aprecie o calor do infinito mistério – A vida é incêndio, docinho, e os incêndio, incêndios são.”
. Minoconto de Luiz Bras
Pequena coleção de grandes horrores
De Luiz Bras
Editora Circuito, 144 páginas, R$ 35
Ele já foi o escritor Nelson de Oliveira. Mas, de uns anos para cá, de comum acordo com o personagem, resolveu conceder a ele uma tranquila aposentadoria, sem maiores traumas, para transformar-se em Luiz Bras – um ficcionista nascido em Cobra Norato, no Mato Grosso do Sul, e que estudou letras na USP. Como se não bastasse, o irrequieto Nelson de Oliveira, que na realidade é de Guaíra, no interior de São Paulo, mas mora há muito tempo na capital, agora é também Valério de Oliveira, junto ao qual tem cometido ótimas poesias. Seu novo livro, Pequena coleção de grandes horrores, é de autoria pura e exclusiva de Luiz Bras.
Metamorfoses à parte, o que, aliás, não é uma coisa tão inusitada na literatura, certo é que Luiz Bras (antes já havia lançado o romance Sozinho no paraíso e o volume de contos Paraíso líquido), volta-se agora para o miniconto, gênero difícil, no qual se sai muito bem. É provável que tenha aprendido a escrever com Nelson de Oliveira.
Nas dezenas de histórias dessa nova coletânea, que nunca ultrapassam a uma página e meia (algumas têm poucas linhas), Luiz Bras escreve sobre temas variados, mas sempre voltado para a irreverência e loucura dos tempos modernos, nos quais as pessoas, definitivamente, parecem não se entender. Conflitos internos, solidão, corrupção e desmandos políticos, tudo está presente no livro. Em alguns textos, Luiz Bras, com ousadia calculada, se apropria de textos de autores famosos, como Kafka, Guimarães Rosa e Cervantes, e dá a eles seu toque pessoal, tudo com boa dose de humor e ironia. E quanto a Nelson de Oliveira, como ele tem convivido com Luiz Bras e Valério de Oliveira? “Somos uma pequena família feliz”, afirma.
Depois de bom tempo navegando nas águas do romance, você volta ao conto e lança Pequena coleção de grandes horrores. Por que a opção pelas histórias curtas?
Na verdade, não costumo ser fiel a um só gênero literário. Aprecio todos, especialmente o conto, o romance e o poema. Enquanto escrevia o romance Sozinho no deserto extremo, lançado há dois anos, escrevi muitos dos minicontos reunidos nesse novo livro. Também escrevi uns poucos poemas, para o próximo livro de meu alter ego Valério Oliveira. A escritura de um romance, por ser uma atividade de longo prazo, sempre deixa espaços para o exercícios das formas mais breves.
Nas suas histórias, os conflitos humanos surgem a cada momento, de forma crua, tansparente, sem muita piedade. Essa loucura toda é inerente ao ser humano?
Os 60 minicontos da Pequena coleção de grandes horrores são narrativas cruéis, de humor negro. Neles, a maioria dos vícios humanos é exposta e ridicularizada. Essa foi a maneira que encontrei de refletir literariamente sobre o mundo em que vivemos. Gosto demais, por exemplo, dos minicontos que tratam da corrupção na política brasileira. Escrever essas histórias perversas foi a minha vingança contra as autoridades demoníacas que infestam as instituições públicas.
Então a matéria-prima estava toda aí, ao redor? Como as histórias foram surgindo?
De muitas maneiras. Principalmente incitado pelo desejo de jogar com a linguagem literária. Muitos dos minicontos subvertem as regras gramaticais, convidando o leitor a fugir da rotina. Fazem uso do monólogo interior, da anáfora, da quebra sintática. Outros homenageiam livros e autores que eu admiro. Há uma pequena série que se apropria do início de narrativas famosas, como Dom Quixote, A metamorfose, Macunaíma, Lolita, Grande sertão: veredas e outras. Tudo com uma boa dose de ironia e humor.
Muitos andam apregoando que o conto anda em baixa, não vende. O que você está achando disso, já que resolveu investir?
Comercialmente, o romance tem se saído melhor. Hoje, as grandes editoras preferem publicar romances, até mesmo de baixa qualidade, porque sabem que o retorno financeiro será maior. Mas isso não significa que o conto, a crônica e o poema não estejam vivendo uma grande fase no Brasil. Critérios comerciais e estéticos raramente andam de mãos dadas. Num país em que há contistas do nível de Dalton Trevisan, um Rubem Fonseca, um Luiz Vilela e tantos outros, o conto jamais estará em baixa.
Há mais de 20 anos você organizou a antologia Geração 90: os transgressores, que na época deu o que falar. De lá para cá, como você tem visto a movimentação literária da nova geração? Muita gente escrevendo?
Muita gente. Dentro e fora do mainstream. Nos últimos meses, tive a sorte de esbarrar em quatro livros bastante inspirados, mas pouco comentados, de autores estreantes: Carne falsa, coletânea de contos da catarinense Patrícia Galelli; o romance Desabandono, do carioca Ricardo Josuá, e Remédio forte, coletânea de contos do baiano Gláuber Soares. Na poesia, não posso deixar de recomendar o livro de estreia da goiana Mariana Teixeira, Inversos paralelos, excelente.
Depois que Nelson de Oliveira se foi, como tem sido sua convivência com Luiz Bras e agora também com Valério Oliveira?
A convivência tem sido pacífica, sem atritos. Desde que Nelson de Oliveira aposentou-se da literatura e saiu do país, tudo ficou mais fácil. As disputas estéticas cessaram. Agora, eu divido o tempo com o poeta Valério Oliveira e o ilustrador Teodoro Adorno, que são alter egos menos competitivos. Somos uma pequena família feliz.
Nas ruínas do laboratório subterrâneo
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso – Estava deitado sobre as costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha – As inúmeras pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos – Sonhos intranquilos, costas duras como couraça, inúmeras pernas, que importância tem tudo isso? – Nenhuma, querido – Que é a vida? – Um frenesi – Que é a vida? – Uma ilusão, uma sombra, uma ficção – O maior bem é tristonho, porque toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são – Quando certa manhã você acordou metamorfeseado num inseto monstruoso, amorzinho, você demorou para lembrar & aceitar que jamais havia sido outra coisa – Deixe de bobagem, luz de minha existência – Nas ruínas do laboratório subterrâneo nunca existiu criatura que não fosse um inseto monstruoso – A medicina genérica e a engenharia genética universalizaram a metamorfose – Verdade & ilusão, conhecimento & ignorância agora são a mesma vertigem – Está ouvindo o imenso silêncio do universo? – Pare de estrebuchar, abra outra garrafa de vinho e aprecie o calor do infinito mistério – A vida é incêndio, docinho, e os incêndio, incêndios são.”
. Minoconto de Luiz Bras
Pequena coleção de grandes horrores
De Luiz Bras
Editora Circuito, 144 páginas, R$ 35
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