sábado, 26 de abril de 2014

Sujeito, sociedade e o negócio da droga - Oscar Cirino

Estado de Minas: 26/04/2014 



O neurocientista Carl Hart desfaz o estereótipo do drogado fissurado pelo prazer imediato (Eillen Barroso/Divulgação)
O neurocientista Carl Hart desfaz o estereótipo do drogado fissurado pelo prazer imediato

“Fumei um celular” ou “cheirei uma TV” são enunciados que, considerados fora do contexto, nos soam desvairados e absurdos. Deparamo-nos também com barganhas inusitadas: “Troquei uma moto por 10 pedras” ou “o botijão de gás por pó”. Qual é o nexo que perpassa esses negócios?

A economia relacionada ao tráfico internacional de drogas e os bilhões de dólares que este movimenta, por outro lado, não nos causam estranheza, visto que respondem com clareza à lógica do mercado e do lucro. Há também um tipo de consumo que pouco nos espanta, consonante com essa mesma lógica. Encontramos bom exemplo no personagem interpretado por Leonardo DiCaprio no recente filme, dirigido por Martin Scorsese, O lobo de Wall Street: Jordan Belfort ingere comprimidos de methaqualone (Mandrix), cheira carreiras de cocaína para ficar mais esperto e agressivo na construção voraz e nada escrupulosa da posição de destaque na bolsa de valores, usufruindo e exibindo todos os signos do poder social.

Quem também comungou com esse receituário neoliberal de Wall Street foi o ex-presidente argentino (1989-1999) Carlos Menem, que, além de ligações com o narcotráfico, possuía várias comunidades terapêuticas para o tratamento de “dependentes químicos”.

Será que todo consumidor de drogas compartilha dessa mesma lógica? Nem sempre. Trainspotting (1996), filme britânico sobre dependentes de heroína, é paradigmático a esse respeito, ao retomar e subverter um dos valores fundamentais do discurso capitalista: a liberdade de escolher, de escolher para produzir e consumir. Com trilha sonora frenética, a película apresenta, na primeira cena, jovens correndo pelas ruas enquanto uma voz em off enuncia: “Escolha uma vida, escolha um emprego, escolha uma carreira... Escolha uma TV grande, máquina de lavar, carros... Escolha saúde, colesterol baixo... Escolha prestações fixas para pagar, uma casa, roupas e acessórios... Escolha um futuro, uma vida”. Na sequência, um dos jovens, agora deitado, sob o efeito da heroína, enquanto a voz prossegue: “Por que eu ia querer isto? Preferi não ter uma vida. Preferi outra coisa. E os motivos? Não há motivos. Para quê motivos quando se tem heroína? ’’

Assim, o toxicômano ou dependente de drogas muitas vezes recusa-se a fazer carreira e a pertencer ao sistema que sustenta toda a circulação da competição na sociedade. Colocando-se à parte, não corre como todos os demais para afirmar-se e alcançar a realização social. Nesse sentido, ele pode ser um perigo para o mercado e sua conexão entre produção e consumo.

Seguramente podemos discordar de que “não há motivos” para a adesão mortífera a esse objeto, pois sabemos que a função da droga varia para cada sujeito e depende do contexto em que se dá o consumo. Pesquisa etnográfica realizada com crianças e jovens em situação de rua no Brasil constatou que eles necessitavam de substâncias excitantes (cocaína) à noite, para não dormir, por medo de abuso físico e sexual; de relaxantes (cola) pela manhã, para diminuir o estresse; e de maconha ao meio-dia, para se alimentar. Já um jovem psicótico, que fuma dez cigarros de maconha por dia, enuncia que eles acalmam os pensamentos invasivos e assustadores que assaltam sua cabeça.

No mês de maio desse ano, virá ao Brasil o único negro a obter uma cátedra de neurociência na Universidade de Columbia (EUA). Trata-se do neuropsiquiatra Carl Hart, que realiza pesquisas no campo das toxicomanias que podem contribuir para melhor entendimento do que acontece com muitos dependentes de drogas, especialmente do crack, no Brasil. Sua concepção deixa claro que o foco nas internações compulsórias e no acirramento das leis antidrogas não são as melhores soluções para a questão. Explicita ainda que a obsessão das neurociências em explicar a dependência apenas pelo poder viciante da substância nos circuitos de recompensa cerebral é extremamente redutora, pois as pessoas se tornam dependentes de drogas por uma série de fatores e que se elas têm problemas com as drogas certamente ele não é o único. Possível explicação para essa obsessão, segundo dr. Hart, é a de que os cientistas sabem que terão mais dinheiro para as pesquisas se continuarem dizendo aos governantes que vão encontrar a solução para esse complexo problema.

Droga e racismo Nos anos 1980, ocorreu uma explosão do consumo de crack nos EUA, e Carl Hart, em seu livro High price, analisa o “alto preço” que a comunidade negra teve que pagar na chamada “guerra às drogas”. Em outras palavras, o foco dessa guerra era a pobreza, o racismo, o desemprego e outros problemas sociais.

Sua pesquisa inicial deu-se com os tradicionais ratos de laboratório. Constatou-se que, mesmo para esses roedores, o ambiente era fundamental no estabelecimento da dependência. Os ratos criados solitários, e que não tinham outras opções, continuavam pressionando a alavanca para a obtenção da cocaína até à morte,mas, quando se enriquecia o seu ambiente, dando-lhes acesso a um doce, a um parceiro sexualmente ativo ou deixando-os brincar com outros ratos, eles deixavam de pressionar a alavanca.

No entanto, o experimento mais instigante foi realizado com seres falantes. Dr. Hart recrutou dependentes, oferecendo-lhes a chance de ganhar até 950 dólares enquanto fumavam crack feito a partir de cocaína farmacêutica. A maioria dos entrevistados eram homens negros de baixa renda. Para participar, tinham que viver em uma enfermaria de hospital por várias semanas.

No início de cada dia, uma enfermeira colocava certa dose de crack, que variava diariamente, em um tubo. Apesar de fumar, o participante ficava de olhos vendados para que não pudesse ver a quantidade da dose. Em seguida, depois do uso inicial, eram oferecidas a cada participante mais oportunidades para fumar a mesma dose. Porém, a cada vez que a oferta era feita, os participantes também tinham opção de escolher outra recompensa (dinheiro ou um vale de cinco dólares para a compra de mercadorias), à qual só teriam acesso quando deixassem o hospital no fim do experimento, semanas depois. Dr. Hart constatou que quando o prêmio era de US$ 5 eles escolhiam a droga na metade das vezes, mas quando aumentou o valor para US$ 20, o consumo do crack foi preterido, pois só escolhiam o dinheiro ou o vale.

O neuropsiquiatra desfez a caricatura do dependente fissurado que não consegue resistir à próxima dose e abrir mão do prazer imediato da droga. Em outras palavras, conceber que o problema se concentra apenas nas características químicas do crack é desconhecer a presença dos aspectos subjetivos e sociais. O que o crack pode oferecer, como também a cachaça, é alívio temporário para os de “vida severina” que se encontram em situação socialmente desfavorável, como é o caso de grande parte dos brasileiros envolvidos. Seus problemas são maiores que o crack e se concentram na falta efetiva de educação, de moradia, de emprego, de oportunidades reais de construir um futuro melhor. O negócio é o seguinte: para seres falantes não há remédio sem convivência e laço social.

Oscar Cirino é psicanalista e integra a equipe do Centro Mineiro de Toxicomania.

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